Título: Liberalizar, uma boa ideia?
Autor: Fernando de Paula, Luiz
Fonte: Valor Econômico, 08/03/2012, Opinião, p. A13

Passado quase 20 anos de estabilidade de preços seria de se esperar que o Brasil tivesse um nível de taxa de juros mais próximo dos países desenvolvidos e desenvolvesse mecanismos de financiamento privado de longo prazo compatíveis com as necessidades da economia brasileira. Ainda que tenha havido uma melhora em relação ao ambiente de alta inflação, falta ainda um longo caminho para alcançarmos o estágio compatível ao dos países desenvolvidos.

Um dos motivos frequentemente apontado tem sido a manutenção de resquícios de uma institucionalidade no mercado financeiro herdada do período de alta inflação - dívida pública indexada à Selic, mecanismos de poupança compulsória, etc.

Neste sentido, o economista Pérsio Arida vem defendendo que, para reduzirmos ainda mais a taxa de juros básica, seria necessário acabar com o subsistema de crédito subsidiado, baseados em recursos do FGTS, FAT e caderneta de poupança, que teve sua funcionalidade no período de alta inflação, mas agora, com o desenvolvimento do mercado de capitais e de crédito, revela-se anacrônico e custoso para a sociedade. Isto porque o Banco Central (BC), em função do crédito subsidiado, é obrigado a praticar juros bem mais altos do que o necessário para controlar a inflação.

Há distorções com o crédito subsidiado, mas não se pode acabar com ele sem colocar outra coisa no lugar

Tal medida geraria benefícios para a sociedade como um todo, em particular trabalhadores (que teriam os recursos do FGTS remunerados a taxas de mercado), consumidores que não têm acesso ao crédito subsidiado e o Tesouro Nacional (que pagaria menores taxas menores em sua dívida). Consequentemente, a poupança privada agregada da economia cresceria, e o mercado de crédito e capitais se desenvolveria plenamente. A proposta merece atenção.

A ideia subjacente é a chamada "teoria da repressão financeira", segundo o qual, devido à política de juros subsidiado (abaixo da "taxa natural"), os países em desenvolvimento sofrem de carência crônica de poupança interna, criando a necessidade artificial de políticas de crédito seletivo na alocação dos escassos recursos poupados. Com taxas de juros (no segmento subsidiado) abaixo da prevalecente no mercado livre, a quantidade de crédito ofertada é inferior à quantidade demandada.

Assim, devido histórica repressão da taxa de juros pelo governo, os mercados financeiros permanecem subdesenvolvidos e, por causa da falta de incentivo para poupar, poupadores preferem consumir e/ou comprar ativos de curto prazo. Logo, liberalização financeira é a solução para aceleração da poupança e do crescimento.

Cabem algumas observações a respeito da proposta. Em primeiro lugar, mercado financeiro não funciona como um mercado ordinário de bens, pois está sujeito a incertezas, assimetrias de informação, comportamentos "irracionais", que são intrínsecos ao seu funcionamento. Tais fatores podem gerar situações de racionamento de crédito e de forte instabilidade financeira. Esses problemas são maiores em países em desenvolvimento, como o Brasil, onde frequentemente predomina um comportamento "curto-prazista" em função da preferência pela liquidez dos agentes, decorrente dos maiores riscos inerentes ao seu contexto macroeconômico.

Assim, não é de se estranhar a existência de mercados financeiros incompletos, dada a incapacidade de mercados livres desenvolverem certos segmentos do mercado, como é o caso de mercado voltado para o financiamento do investimento. De fato, a experiência histórica dos países que realizaram seu "catching-up" no século XX mostra que o desenvolvimento foi fortemente amparado em alguma forma de intervenção estatal, seja através de bancos de desenvolvimento, seja através de determinadas linhas de financiamento subsidiadas.

Em segundo lugar, ainda que seja correto apontar que o reajuste do FGTS abaixo da remuneração do mercado é uma expropriação da renda do trabalhador, não se pode analisar a poupança compulsória unicamente a partir da ótica microeconômica, ou seja, deve-se considerar a sua dimensão macroeconômica, as possíveis externalidades em prover segmentos de financiamento que não existiriam de outra forma. Isto nos remete à seguinte questão: o mercado financeiro está pronto para prover as necessidades de financiamento privado de longo prazo da economia? Temos um mercado denso e em vias de se tornar desenvolvido?

De fato, o mercado de crédito vem crescendo firmemente desde 2004, mas predomina largamente financiamento ao consumidor e de capital de giro das empresas. Por sua vez, no mercado de títulos corporativos há predominância de debêntures remuneradas pela taxa DI e de maturidade média, o que significa que o risco de taxa de juros está nas mãos da empresa emissora, que assim financia seus ativos de longa vida com dívida de curto prazo e sujeita ao risco de mercado.

Enfim, ainda que seja correto apontar distorções no subsistema de crédito subsidiado, corre-se seriamente o risco de acabarmos com algo sem colocar outra coisa no lugar, embevecidos pelo fetiche de que o mercado livre e competitivo - operando só com taxas de mercado - saberá discernir melhor a alocação de recursos na economia.

Deve-se adotar medidas graduais e firmes para desenvolver o mercado financeiro e reduzir os juros no Brasil, mas sem cair na ilusão de que a questão se resolverá em um passe de mágica.

Luiz Fernando de Paula - Professor da FCE/UERJ e presidente da Associação Keynesiana Brasileira (AKB). O autor expressa seus pontos de vista em caráter pessoal.