Título: A dor da Espanha vai testar o euro ::
Autor: Wolf ,Martin
Fonte: Valor Econômico, 07/03/2012, Opinião, p. A15

Uma definição de insanidade é repetir uma mesma coisa e esperar resultados diferentes. A determinação alemã de impor uma penitência a seus parceiros na zona euro não funcionou no "pacto de estabilidade e crescimento". Será que funcionará no "tratado sobre estabilidade, coordenação e governança" acordado na semana passada? Duvido. O tratado reflete a visão de que a crise deveu-se a indisciplina fiscal, cuja solução é mais disciplina. Isso está longe de toda a verdade. A aplicação rigorosa de uma ideia enganosa é perigosa.

Tais preocupações podem agora parecer remotas. As operações de refinanciamento de longo prazo do Banco Central Europeu (BCE) aliviou a pressão tanto sobre os bancos como sobre os mercados financeiros, inclusive os mercados de dívida soberana. Em duas operações, os bancos tomaram emprestado mais de €1 trilhão durante três anos por apenas 1%. Os rendimentos dos títulos governamentais italianos e espanhóis de 10 anos caíram abaixo de 5% - de picos de 7,3% no caso da Itália e 6,7% no da Espanha no fim do ano passado. Igualmente importante foram as quedas dos swaps de risco de crédito referentes a ativos bancários: o spread do italiano Intesa Sanpaolo caiu de 623 pontos base em novembro de 2011, para 321 pontos na segunda-feira.

A crise não passou. Em graus variados, os países mais vulneráveis estão em dificuldades duradouras. Essas disciplinas fiscais teriam salvo a zona do euro das crises? Será que elas agora tirarão os países atingidos dessas crises? As respostas são não.

A nova regra fundamental é que o déficit fiscal estrutural de um país membro não deve exceder 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB), exigindo que os países registrassem superávits estruturais. Se um país tem uma dívida superior a 60% do PIB, o excesso deve ser eliminado a uma taxa média de 20% do excesso a cada ano. Um país como a Itália, com a dívida aproximada de 120% do PIB, reduziria a relação a uma taxa de 3% do PIB por ano. Esse é o esquema que todos os membros da zona euro devem aderir. Essas regras deverão ser incorporadas em lei, preferencialmente na legislação constitucional.

Esse tratado levanta profundas questões legais, políticas e econômicas. Com efeito, faz sentido econômico público tomar como alvo os déficits corrigidos ajustados por suas variações cíclicas, em vez dos déficits reais. Mas a melhoria do enfoque econômico se dá à custa de uma redução na precisão. Ninguém sabe o que é um déficit estrutural.

Isso não é um sofisma. Considere as posições estruturais fiscais para 2007, o último ano praticamente pré-crise, estimadas pelo FMI em outubro de 2007 - em "tempo real", pode-se dizer. Esse foi um ano em que o indicador precisou gritar "crise". No entanto, ele mostrou a Espanha com um grande superávit estrutural e a Irlanda em equilíbrio estrutural. Ambos estavam em forma ainda melhor do que a Alemanha. A Grécia apresentava, efetivamente, um déficit estrutural considerável. Mas o déficit francês era pior do que o português. A regra não teria discriminado entre os países mais vulneráveis e aqueles imunes, porque ela ignora bolhas de ativos e febres financeiras.

O FMI reviu sua posições. Em outubro de 2011, o Fundo havia concluido que o déficit fiscal estrutural da Grécia em 2007 tinha sido de 10,4% do PIB, e não 4%, e que o da Irlanda fora 8,4%, e não 0,1%. Isto não é uma crítica ao FMI. O Fundo simplesmente mostra que o conceito que a zona do euro pretende incorporar ao novo tratado será falho, quando precisão é mais necessária. O déficit estrutural é insondável.

Considere as implicações políticas e legais. Irão governos eleitos aceitar estimativas "chutadas" por tecnocratas não obrigados a prestar contas a suas sociedades? Além disso, como iriam os juízes chegar a uma decisão? Deverão eles avaliar os méritos de modelos econométricos alternativos? Uma vez que são prováveis enormes mudanças nas estimativas dos déficits estruturais, como deveria um governo se adaptar? Converter em lei um conceito imensurável parece loucura.

Neste momento, atritos começam a se manifestar entre as instituições europeias e o recém-eleito governo espanhol de Mariano Rajoy. Este afirmou que seu governo assumirá, para o déficit orçamentário, uma meta de 5,8% do PIB, abaixo dos 8,5% conseguidos em 2011, mas bem acima dos 4,4% que acordaram com a Comissão, que não vai gostar. Mas não pode obrigar um governo soberano a fazer o que ela quiser. Os parceiros da Espanha poderão recusar ajuda, mas poderá repercutir danosamente sobre eles próprios.

As dificuldades fiscais da Espanha são uma consequência da crise, e não uma causa. O país viu enormes aumentos da dívida privada após 1990, especialmente por parte de empresas não financeiras. O excesso de construção de casas também inviabiliza um endividamento substancial das famílias. Diante disso, é extremamente improvável que uma forte redução do endividamento público seja compensada por mais empréstimos e gastos privados. É mais provável que o resultado seja recessão bem mais profunda, juntamente com pouco progresso na redução dos déficits fiscais reais. Na pior das hipóteses, poderá ocorrer um círculo vicioso descendente. Em vez de obrigar a Espanha a uma contenção orçamentária rápida, seria muito mais sensato dar ao país o tempo necessário para que as ousadas reformas em seus mercados produzam seus efeitos. Isso levará alguns anos.

Para que a zona do euro esteja disposta a conceder o tempo necessário para que tais ajustes ocorram, os países superavitários precisam estar conscientes do seu papel. Sem dúvida, a ascensão paralela de superávits e déficits em contas correntes, os fluxos de financiamentos entre países e a loucura dos bancos em suas operações em países estrangeiros desempenharam enormes papéis na origem da crise atual.

Em documento publicado no mês passado, a Comissão manifestou sua intenção de examinar alguns países com déficits externos, que são até citados nominalmente. Uma análise paralela é necessária também envolvendo os países superavitários. O documento chega até mesmo a levantar a questão. Mas não se atreve a identificar países superavitários específicos para ser submetidos a uma análise detalhada. A zona do euro está em guerra com a contabilidade de dupla entrada.

Portanto, o BCE comprou algum tempo para a zona do euro. Mas pouco sugere ter sido encontrado um caminho para o reequilíbrio da economia da zona euro e, sobretudo, um rumo no sentido do desejado mix de reforma, ajuste e rápido regresso ao crescimento. Porém, o caminho escolhido parece passar por anos de ajuste unilateral e dolorosa austeridade. Será que isso dará certo? Duvido muito. Na melhor das hipóteses, podemos esperar muitos solavancos ao longo dessa estrada. (Tradução de Sergio Blum)

Martin Wolf é editor e principal comentarista econômico do FT.