Título: Preconceitos contra a globalização
Autor: Rodrik ,Dani
Fonte: Valor Econômico, 12/03/2012, Opinião, p. A15

Recentemente, fui convidado por dois colegas de Harvard para falar como visitante em um curso sobre a globalização. "Preciso te avisar", um deles me advertiu, "esse pessoal é bastante favorável à globalização". No primeiríssimo encontro, ele perguntou aos alunos quantos deles preferiam comércio livre a restrições a importação; a resposta foi superior a 90%. E isso foi antes de os estudantes terem sido instruídos sobre as maravilhas das vantagens comparativas!

Sabemos que quando a mesma pergunta é feita em pesquisas reais com amostras representativas - não apenas a estudantes de Harvard - o resultado é bem diferente. Nos EUA, os entrevistados favorecem restrições comerciais na proporção de dois para um. Mas a reação dos estudantes de Harvard não foi inteiramente surpreendente. Entrevistados altamente qualificados e mais bem educados tendem a ser muito mais pró-livre comércio do que operários. Talvez os estudantes de Harvard estivessem simplesmente votando com suas próprias (futuras) carteiras em mente.

Ou talvez eles não entendam como o comércio realmente funciona. Afinal, quando estive com eles, fiz a mesma pergunta em roupagem diferente, enfatizando os prováveis efeitos distributivos do comércio. Dessa vez, o consenso em torno do livre comércio evaporou - ainda mais rapidamente do que imaginava.

Iniciei a aula perguntando aos alunos se eles aprovariam que eu realizasse uma peculiar experiência mágica. Escolhi dois voluntários, Nicholas e João, e disse a eles que eu seria capaz de fazer desaparecer US$ 200 da conta bancária de Nicholas - puf! - e acrescentaria US$ 300 à de João. Essa façanha de engenharia social deixaria todos os alunos mais ricos em US$ 100. Permitiriam-me eles realizar esse truque de magia?

Aqueles que votaram afirmativamente constituíram apenas uma pequena minoria. Muitos declararam-se indecisos. Ainda mais alunos opuseram-se à mudança.

Evidentemente, os alunos revelaram-se desconfortáveis em concordar com uma redistribuição significativa de renda, mesmo que o bolo econômico, como resultado, crescesse. Como é possível, perguntei eu, que quase todos tivessem se manifestado instintivamente favoráveis ao livre comércio, que implica em semelhante - em verdade, provavelmente maior - redistribuição dos perdedores para os vencedores? Eles pareceram surpresos.

Vamos supor, disse eu, em seguida, que as próprias duas pequenas empresas de Nicholas e João competissem uma contra a outra. Suponhamos que João ficou US$ 300 mais rico por ter trabalhado duro, economizado e investido mais, e criado melhores produtos, provocando a falência de Nicholas e causando-lhe um prejuízo de US$ 200. Quantos alunos, agora, aprovariam a mudança? Dessa vez, uma grande maioria aprovou - na verdade, todos a aprovaram, exceto o próprio Nicholas!

Eu coloquei outras hipóteses, agora diretamente relacionadas ao comércio internacional. Suponhamos que João tivesse provocado a falência de Nicholas devido à importação de insumos de mais alta qualidade da Alemanha? Por terceirizar operações na China, onde os direitos trabalhistas não são bem protegidos? Mediante a contratação de trabalho infantil na Indonésia? O apoio às mudanças propostas caiu em cada uma destas alternativas.

Mas o que dizer sobre as inovações tecnológicas, que, como o comércio, frequentemente deixam algumas pessoas em pior situação. Nesse caso, poucos alunos defenderiam impedir o progresso tecnológico. Proibir as lâmpadas elétricas porque operários em fábricas de velas perderiam seus empregos é recebida por quase todo mundo como uma ideia tola.

Assim, os estudantes não eram necessariamente contra a redistribuição. Eles eram contra certos tipos de redistribuição. Como a maioria de nós, eles se preocupam com equanimidade procedural.

Para julgar resultados redistributivos, precisamos conhecer as circunstâncias que os causam. Não criticamos Bill Gates ou Warren Buffett por seus bilhões, apesar de seus concorrentes terem sofrido ao longo do caminho, provavelmente porque eles e seus concorrentes operam de acordo com as mesmas regras básicas e enfrentam praticamente as mesmas oportunidades e obstáculos.

Nós pensaríamos de forma diferente se Gates e Buffett tivessem enriquecido não devido a trabalho duro, mas trapaceando, desrespeitando leis trabalhistas, devastando o ambiente ou aproveitando subsídios no exterior. Se não toleramos redistribuição que desrespeita códigos morais amplamente compartilhados em nosso país, por que deveríamos aceitá-la apenas por envolver transações em outras fronteiras?

Da mesma forma, quando acreditamos que efeitos redistributivos se nivelem a longo prazo, de modo que todo mundo termina beneficiado, ficamos mais propensos a ignorar redistribuições de renda. Essa é uma das principais razões pelas quais acreditamos que o progresso tecnológico deve seguir seu curso, apesar de seus efeitos destrutivos de curto prazo sobre alguns. Quando, por outro lado, as forças do comércio impactam repetidamente as mesmas pessoas - gente menos instruída, operários - podemos nos sentir menos positivos em relação à globalização.

Muitos economistas revelam-se surdos diante de tais distinções. Eles tendem a atribuir preocupações sobre a globalização a grosseira motivação protecionista ou a ignorância, mesmo quando há questões éticas reais em jogo. Ao ignorar o fato de que o comércio internacional, por vezes - certamente, nem sempre - envolve resultados redistributivos que seriam considerados problemáticas em seus países eles não se envolvem no debate público de forma adequada. Eles também perdem a oportunidade de estruturar uma defesa mais vigorosa do comércio quando as preocupações éticas são menos justificadas.

Embora a globalização ocasionalmente levante questões difíceis sobre a legitimidade de seus efeitos redistributivos, não devemos reagir automaticamente restringindo o comércio. Há muitas decisões difíceis que implicam em ganhos e perdas para diferentes participantes, inclusive consequências para outros ao redor do mundo que podem empobrecer significativamente mais do que os prejudicados em nosso país.

Mas as democracias devem a si próprias um debate adequado, para que possam assumir essas escolhas de maneira consciente e deliberada. Fetichizar a globalização simplesmente porque ela expande o bolo econômico é o caminho certo para deslegitimizá-la no longo prazo. (Tradução de Sergio Blum)

Dani Rodrik é professor de Economia Política Internacional na Universidade Harvard e autor de "The Globalization Paradox: Democracy and the Future of the World Economy" (O paradoxo da globalização: democracia e o futuro da economia mundial).