Título: Salário mínimo e combate à pobreza
Autor: Saboia, João
Fonte: Valor Econômico, 17/07/2006, Opinião, p. A14

Em artigo publicado no Valor em 9 de maio passado, discutimos a importância do salário mínimo (SM) na distribuição pessoal da renda no Brasil na última década. O objetivo principal do artigo de hoje é verificar o papel do salário mínimo sobre a pobreza. A melhor variável a ser considerada no estudo da pobreza e da distribuição de renda não é o rendimento individual, mas o das famílias, pois estas representam a unidade de consumo das pessoas. Utilizaremos aqui o rendimento familiar per capita (isto é, o rendimento médio de cada pessoa da família) considerando, portanto, o tamanho da família.

Para analisar o papel do SM no combate à pobreza, é preciso saber onde estão localizados na estrutura de rendimentos familiares tanto os trabalhadores que recebem o SM quanto as pessoas que recebem pensões e aposentadorias equivalentes ao valor do SM. Fariam parte das famílias mais pobres? Estariam distribuídos pelas famílias com os mais diferentes níveis de rendimento? Por acaso, seria possível encontrá-los também no interior das famílias mais ricas? Para responder a essas questões foram utilizados os dados da PNAD de 2004.

Ao se considerar apenas os rendimentos do trabalho verifica-se que efetivamente a maior parte das pessoas que recebem o SM estão localizadas nos níveis médios e baixos da distribuição de renda. Curiosamente, poucas pessoas dentre as que recebem o SM como rendimento do trabalho pertencem às 10% das famílias mais pobres, o que pode ser explicado pelo baixíssimo nível de renda dessas famílias (R$ 25 per capita). Conforme esperado, é relativamente raro encontrar pessoas recebendo o SM como rendimento do trabalho entre as 10% das famílias mais ricas. Em geral, os trabalhadores que recebem o SM estão distribuídos pelas famílias com rendimentos médios ou baixos. Cerca de metade pertence às famílias do quarto ao sexto décimo da distribuição do rendimento familiar per capita (ver tabela).

Resultados semelhantes, porém um pouco mais deslocados para os níveis mais altos de renda, são encontrados ao serem considerados os rendimentos de pensões e aposentadorias iguais ao valor do SM. No caso das aposentadorias, mais de três quartos daqueles que recebem valor equivalente ao SM estão localizados entre o quarto e o oitavo décimo da distribuição. No caso das pensões, 85% estão entre o quarto e o nono décimo da distribuição. Em outras palavras, tanto nas famílias mais pobres quanto nas mais ricas é relativamente raro serem encontradas pessoas recebendo pensões e aposentadorias iguais ao SM.

-------------------------------------------------------------------------------- O SM deve ser analisado e diferenciado quando se considera o mercado de trabalho, a previdência e a assistência social --------------------------------------------------------------------------------

Quando considerados juntos tanto os rendimentos do trabalho, quanto de aposentadorias e pensões, verifica-se que as pessoas que recebem exatamente 1 SM de rendimento estão localizadas nos níveis médios e baixos da distribuição do rendimento familiar per capita. Mais da metade localiza-se entre o quarto e o sexto décimo da distribuição. Pouquíssimas são encontradas nos décimos extremos (mais ricos e mais pobres).

Verifica-se, portanto, que a atuação do salário mínimo, através do mercado de trabalho e das transferências previdenciárias, sobre a distribuição de renda e a pobreza, tem limitações. Não há dúvidas que ele possui um forte potencial para a melhoria da distribuição de renda, especialmente através do mercado de trabalho, na medida em que os trabalhadores ativos que recebem o SM localizam-se nas famílias com rendimentos médios e baixos. Seu potencial é menor quando consideradas as pensões e aposentadorias oficiais equivalentes ao SM, que muitas vezes são recebidas por pessoas pertencentes a famílias relativamente bem situadas na pirâmide de rendimentos familiares. Cabe notar que apenas as pessoas que pertencem aos três décimos superiores possuem rendimentos familiares médios acima da média nacional.

No caso da redução da pobreza, entretanto, o poder do salário mínimo parece menor, na medida em que atinge relativamente pouco as pessoas das faixas mais pobres da população. Se supusermos, por exemplo, que a taxa de pobreza no Brasil é de 30%, verificamos que apenas 17% das pessoas que recebem o SM fazem parte das famílias pobres. Mesmo considerando uma taxa de pobreza de 50%, nota-se que pouco mais da metade das pessoas que recebem o SM não pertencem às famílias pobres. Portanto, a maior parte das pessoas que recebem o SM (no trabalho, em pensões ou aposentadorias) não podem ser consideradas pobres pelo padrão brasileiro.

Em outras palavras, o combate à pobreza no curto prazo não pode prescindir de políticas de transferência de recursos diretamente às mãos das famílias pobres como no caso do programa Bolsa Família. O SM poderia, inclusive, aumentar seu potencial no combate à pobreza se os benefícios assistenciais estivessem vinculados ao SM, como acontece com o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que transfere o valor equivalente ao SM para idosos e pessoas deficientes pertencentes a famílias muito pobres (com rendimento familiar per capita até 1/4 do SM).

Os resultados aqui discutidos não diminuem a importância do governo continuar com sua política de recuperação do valor real do SM. Tendo em vista o nível de desenvolvimento econômico do país, há muito espaço para a elevação do SM nos próximos anos. Seu papel, entretanto, deve ser analisado e diferenciado quando se considera separadamente o mercado de trabalho, a previdência social e a assistência social e quando se tem como objetivo a melhoria da distribuição de renda ou a redução da pobreza.