Título: Decisão do Supremo sobre MPs tem acertos e riscos
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 19/03/2012, Opiniao, p. A12

É oportuna a discussão aberta pelo Palácio do Planalto sobre o rito de tramitação das Medidas Provisórias. A rigor, talvez seja o caso de se estender o debate à própria natureza das chamadas MPs, delimitar mais precisamente as divisas até onde podem ser adotadas, colocar uma tranca definitiva para impedir "contrabandos", públicos e privados, transformados em rotina nos textos em tramitação no Legislativo.

O julgamento sobre a constitucionalidade da lei que criou o Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade, no último dia 7, é um exemplo perfeito e acabado da oportunidade da discussão. O Supremo Tribunal Federal (STF) considerou a lei inconstitucional porque o Congresso não constituiu uma comissão especial para analisar a matéria, como determina a Constituição de 1988, e ela foi votada direto em plenário.

Até então o STF foi impecável. Atulhado de MPs fabricadas em série pelo Executivo, o Congresso desde há algum tempo estabeleceu ele próprio um prazo de 14 dias para as medidas serem analisadas. Depois disso, elas são diretamente votadas no plenário. Na prática, o que ocorre é que o deputado relator torna-se o "Senhor da MP" e os projetos de conversão (em lei) são elaborados longe do olhar crítico do distinto público, o eleitor, a sociedade que de uma ou outra maneira será afetada pela Medida Provisória.

Com bom senso, o STF corrigiu essas anormalidades, mas é de difícil aceitação a explicação de que os ministros não se deram conta de que, ao declarar inconstitucional a criação do instituto pelos motivos apresentados, também jogaram na lata do lixo outras 560 medidas provisórias aprovadas da mesma maneira. Ainda bem que os ministros tiveram humildade para recuar, no dia seguinte, e convalidar todas as MPs editadas até a medida que criou o Instituto Chico Mendes. Do contrário seria o "caos jurídico", a insegurança em relação a contratos e decisões de governo adotadas por medida provisória.

O próprio ministro Luiz Fux, relator da ação, declarou ser inimaginável a quantidade de relações jurídicas "que foram e ainda são reguladas por esses diplomas, e que seriam abaladas caso o Judiciário aplique, friamente, a regra da nulidade retroativa".

O STF obteve a compreensão da sociedade com sua decisão, mas também é fato que deixou no ar uma questão inquietante, como bem observou o professor de direito constitucional Saul Tourinho Leal em artigo publicado no Valor, na quarta-feira, dia 14: "Com o surgimento de situações complexas, o grau de refinamento das decisões de uma Suprema Corte se eleva", escreveu Leal. "Contudo, declarar constitucional algo que sabidamente não o é abre uma porta perigosa que até então estava fechada". O Supremo já flexionou efeitos de inconstitucionalidades, mas nunca afirmou que algo inconstitucional era constitucional.

As Medidas Provisórias foram criadas pela Carta de 88 para assuntos de urgência e relevância. Com o tempo, foram banalizadas pelo Executivo, que passou a usá-las para tratar de assuntos sem urgência e muito menos relevância. Inicialmente, as medidas podiam ser reeditadas indefinidamente, o que levou o currículo de Fernando Henrique Cardoso, nos seus dois mandatos, a relacionar quase o triplo de MPs do que aquelas originalmente editadas. Ninguém mais que o PT lutou para mudar o rito de tramitação, o que veio a conseguir já quase ao final dos dois mandatos de FHC.

No governo, o PT tornou-se refém da armadilha que acionara para FHC: se a MP não fosse votada em determinado prazo, passava a trancar a pauta da Casa em que estivesse tramitando. Era a paralisação do Congresso, até que o atual vice-presidente, Michel Temer, então presidente da Câmara, estabelecesse a interpretação segundo a qual outros projetos podiam ser votados, mesmo com uma MP esperando a vez na pauta. A oposição foi ao Supremo e perdeu.

Condenável sob todos os aspectos é a reação do ex-líder do governo Cândido Vaccarezza (PT-SP). Para o deputado, o Supremo não deveria se envolver nessa questão. O presidente da Câmara, Marco Maia (PT-RS), também torceu o nariz. Mais adequada é a reação do governo: embora a decisão do Supremo a prejudique, a presidente Dilma quer tratar do assunto na instância correta: o Congresso.