Título: O silêncio dos economistas
Autor: Carneiro, Ricardo
Fonte: Valor Econômico, 19/07/2006, Opinião, p. A10

Nos últimos meses, o ajuste fiscal dominou o debate econômico e ganhou a cena política. Como o atual governo, desde o seu início, demonstrou disposição em manter a austeridade fiscal - às vezes de maneira exacerbada, como atesta o patamar de 5% alcançado pelo superávit primário em meados de 2005 - o foco deslocou-se para a qualidade do ajuste fiscal. Nessa nova vertente da discussão, muita coisa importante tem sido dita, e outras ainda mais relevantes vêm sendo omitidas.

Uma das ausências mais importantes nos diagnósticos cuja ênfase é a baixa qualidade do ajuste fiscal diz respeito aos juros. No Brasil, a carga de juros sobre a dívida pública, de cerca de 8% do PIB, é uma das maiores do mundo. Quando se associa o tamanho da dívida com o montante de juros dela decorrente, o resultado é absolutamente desproporcional em comparação a outros países. As teses que advogam a dominância fiscal na determinação da taxa de juros se vêem em dificuldades para explicar a magnitude desta última.

A divergência entre a taxa de juros externa do país, fortemente influenciada pela situação fiscal, e aquela praticada no plano doméstico, determinada pelas políticas monetária e cambial, não tem sido objeto de reflexão por parte dos economistas. Assim, a sacralização dos juros e a despreocupação em discutir os seus determinantes associados à gestão da política macroeconômica prestam um desserviço ao debate sobre o ajuste fiscal. Não se pode ignorar o peso dos juros que hoje, por meio do superávit primário, abarca algo como 15% do total dos gastos públicos. Menos ainda se pode desdenhar o caráter regressivo desse gasto direcionado para os proprietários de riqueza financeira.

Quando se adentra o campo da execução fiscal, as omissões persistem. Assim, por exemplo, o tamanho da carga tributária e seu crescimento nos últimos dez anos são apontados como os problemas cruciais. Esquece-se de assinalar a regressividade dessa carga tributária como questão essencial. Uma comparação da base de incidência dos tributos no Brasil com a dos países desenvolvidos mostra claramente que, no nosso caso, o peso dos tributos indiretos, sabidamente regressivos, é muito superior no Brasil, perfazendo metade da carga tributária. Ademais, de maneira divergente desses países, constata-se, no Brasil, a menor participação da carga tributária incidente sobre a renda, lucros e ganhos.

-------------------------------------------------------------------------------- Se mudança do padrão do gasto público é inadiável, ela deve incluir variáveis como juros e carga tributária regressiva --------------------------------------------------------------------------------

Na discussão do gasto propriamente dito, tem-se enfatizado o rápido crescimento das despesas correntes e, em particular, do gasto social. Da forma como a análise é feita, não é possível discordar das suas conclusões. De fato, nos últimos dez anos, ampliaram-se consideravelmente os gastos correntes medidos como proporção do PIB. O destaque fica para os benefícios previdenciários, responsáveis por cerca de um terço da sua ampliação. Outras despesas com expressivo crescimento são a LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social) e a renda mensal vitalícia, e, mais recentemente o programa Bolsa Família, porém ambas com peso reduzido no conjunto. Em 2005, a Previdência, cujo gasto foi de R$ 146 bilhões - valor próximo da carga de juros - representou cerca de 17 vezes o valor da primeira e 20 vezes o da segunda.

A consideração desses valores como proporção do PIB sugere descontrole do gasto social. Para ficar apenas no principal, os benefícios previdenciários, no período 1995/2005, saltaram de 5% para 7% do PIB. Se olharmos a questão por outra ótica e considerarmos que, no período em questão, o crescimento do PIB foi de apenas 2,5% ao ano, o problema ganha outra conotação. Por exemplo, se a economia tivesse obtido uma taxa de crescimento da ordem de 5% ao ano, esse ganho de participação do gasto social seria muito menos significativo.

O caráter fortemente distributivo do gasto social, como constatado em vários estudos, dentre os quais, o Balance Social de América Latina 2005, da CEPAL, aponta para o caráter desejável da sua ampliação. Nesse estudo, há algumas conclusões que precisam ser destacadas. Constata-se, em direção distinta do senso comum, que o gasto social no Brasil, de cerca de 19% do PIB, é inferior àquele observado nos vizinhos do Cone Sul, Argentina e Uruguai e semelhante ao de países menores como Costa Rica, Panamá e Chile. Quando a comparação se faz em termos per capita, perdemos de todos os países mencionados. O gasto social no Brasil não é nada extraordinário como sugerem as análises correntes e, ao contrário do que muitas afirmam, têm caráter distributivo. Para o nosso caso, o coeficiente de Gini, que mede o grau de concentração da renda, se reduz de 0,56 para 0,49 ao se considerar as implicações redistributivas desse gasto do governo.

Uma constatação relevante assinalada no debate atual e que independe da unidade de medida no qual é expressa - como proporção do PIB ou em termos absolutos - refere-se à deterioração do investimento público. Seu continuado crescimento a uma taxa inferior àquela, já medíocre, do PIB, indica problemas crescentes na sustentabilidade do crescimento, sobretudo pela insuficiência da infra-estrutura. Outra questão pouco enfatizada, ou destacada como positiva, é a do peso decrescente dos gastos com pessoal. Estes teriam declinado ainda mais não fora a ampliação das despesas com inativos. Considerada a premência de qualificação da força de trabalho nas funções típicas de governo tais como saúde, educação, segurança, dentre outras, esses dados não deveriam animar a ninguém.

Um dos méritos inequívocos da polêmica sobre a qualidade do ajuste fiscal refere-se à percepção do esgotamento do padrão dessa política, perseguido nos últimos anos. Mas há no debate omissões muito relevantes e que consideradas podem influir nas prioridades para sua reformulação. Se a necessidade de modificação do padrão do gasto público é inadiável, ela tem de incluir variáveis cruciais como os juros. Isto para não falar da regressividade da carga tributária. Também não pode desconsiderar a imperiosa necessidade de ampliar o ritmo de crescimento do produto e do emprego, sem os quais todos os ajustes ficam mais difíceis.

Ricardo Carneiro é professor do Instituto de Economia e Pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e política Econômica da UNICAMP