Título: Manifestações da Ficha Limpa
Autor: Corrêa, Maurício
Fonte: Correio Braziliense, 03/10/2010, Opinião, p. 27

Pena que o Supremo Tribunal Federal não tenha concluído o julgamento do recurso extraordinário que tratava da inaplicabilidade da Lei da Ficha Limpa para as eleições deste ano. Na quarta-feira passada, sobreveio pedido de desistência do recurso manifestado pelo recorrente, ex-governador de Brasília, levando o tribunal, por maioria, a julgar extinto o feito por perda do objeto, sem julgamento de mérito. Em face dessa circunstância, o acórdão proferido pelo Tribunal Superior Eleitoral sobre a questão não teria produzido coisa julgada, ao contrário do que se esperava. Na visão da maioria, o recurso cuidava apenas de registro de candidatura, e como este ainda não havia se aperfeiçoado, a desistência do apelo, ao fim e ao cabo, outra coisa não implicou senão a desistência do próprio pedido de registro da candidatura. Nada além disso. Os vencidos também entenderam que o recurso estava prejudicado por perda superveniente de objeto, mas que, de seu lado, havia gerado o trânsito em julgado do que havia resolvido o TSE.

A tese de inaplicabilidade da norma para as eleições deste ano só deve ter prosseguimento quando do exame de novo recurso. Segundo se sabe, já existe no tribunal pelo menos um caso com relator designado, versando o mesmo tema. Seu julgamento, contudo, é improvável de ocorrer antes da realização do segundo turno das eleições. A permanecer a atual composição da corte, é quase certo que o empate verificado na votação do recurso extraordinário do ex-governador venha a se repetir. A mais confortável saída para o impasse se conjurará com a nomeação de juiz para a vaga existente. Do contrário, a tendência do empate pode persistir.

Mesmo partindo-se do pressuposto de que o novo ministro seja escolhido imediatamente após as eleições de hoje, é difícil prever que a posse possa se dar durante este mês. Sobretudo porque a escolha de ministro é ato complexo que envolve a participação do presidente da República e do Senado Federal. É bem possível que um mês não seja tempo suficiente para a sabatina na Comissão de Constituição e Justiça, a votação no plenário do Senado Federal e a posse no STF. A menos que haja boa vontade das partes para que os atos do processo possam se cumprir com extrema rapidez.

Os dispositivos da LC nº 135/2010 continuam em plena vigência. Os candidatos que renunciaram a seus mandatos para se livrar de processo disciplinar ou que tenham sido condenados por órgãos colegiados, conforme define a lei, ficarão com suas candidaturas sub judice. A controvérsia para saber se serão convalidadas ou não vai depender do que decidir o STF. Os candidatos que estão nessa situação e perderem as eleições, em princípio não terão mais interesse no que julgar a Corte. Os candidatos, entretanto, que tiverem se saído bem na disputa e, eventualmente, ganho o pleito, ficarão à espera do dia em que a controvérsia for equacionada. Até lá, vão sangrando a resistência pela falta de prestação jurisdicional concedida no devido tempo.

Avalio perfeitamente a seriedade das teses defendidas pelos ministros que se posicionaram a favor e contra a aplicação imediata da Lei da Ficha Limpa. Embora submerso nos argumentos de ambos os lados do debate, mas sem compromisso de votar, torci para que a norma fosse legitimada pelo Poder Judiciário, de modo a viger a partir deste ano. Por isso, como cidadão que conhece as artimanhas e as malandragens de muitos dos fichas sujas da capital e do país, acompanhei pressuroso o desenrolar dos debates, na expectativa de que o lado político-jurídico bom da pendenga pudesse ser vitorioso. Ainda que não o tenha sido, pelo menos até agora, em sua plenitude, o saldo de benefícios já proporcionados é inestimável. O espetáculo que as eleições deste ano exibiram em Brasília é emblemático para os rumos políticos da cidade daqui para a frente. Tudo isso graças aos méritos dos institutos da Lei da Ficha Limpa.

O mandato popular não é uma sociedade por ações ou uma empresa de bens imóveis, com contas bancárias, aplicações financeiras, fazendas, casas, apartamentos, bois e vacas, que podem compor um testamento particular. E que, por isso mesmo, podem os bens ser divididos entre herdeiros, inclusive com os frutos que produzem. O patrimônio particular não se confunde com o público. Este não é prêmio de fim de carreira que se conquista e pode ser repassado a herdeiros de um clã familiar. O mandado popular, seja qual for a sua natureza, não pode se transmudar em testamento político, nem pode ser transmitido por alienação inter vivos ou causa mortis, exatamente porque não se doa ou de outra forma se transmite o que não se tem como dono.

Tenho que a Lei da Ficha Limpa, com tudo de bom que foi capaz de compreender até agora, apaga do mapa uma das culturas mais nefastas da história política da capital da República. Põe termo a uma tradição de equívocos, erros, explorações, acumpliciamentos e reciprocidades de condutas escusas, cujos agentes sempre viveram dependurados nas costas e mamas do poder público. Saber que tudo isso é irreversível assim se aguarda e que nunca mais deve voltar, é a suprema glória e graça que o povo de Brasília acaba de recolher. O que o julgamento da Lei da Ficha Limpa significou, mesmo não tendo sido concluído, revela o louvor do povo aos juízes que a defendem.