Título: Perigo de radicalização
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 03/10/2010, Mundo, p. 28

Analistas temem que o presidente Rafael Correa promova uma caçada à oposição, após ter resistido a rebelião de policiais

Faixa no peito, discurso determinando os eixos de seu governo e palavras repletas de confiança. Não há por que ter medo. Aquele que caminhou sobre o mar e acalmou tempestades também nos ajudará a superar esses difíceis, mas esperançosos, momentos, declarou Rafael Correa, em 15 de janeiro de 2007, ao tomar posse como presidente do Equador. A pior das tempestades veio 1.384 dias depois, quando ele se viu acuado em um hospital militar no centro de Quito, cercado por policiais rebelados. A suposta tentativa de golpe de quinta-feira durou cerca de 14 horas e terminou com forças especiais do Exército resgatando o chefe de Estado, em meio ao tiroteio. Do balcão do Palácio de Carondelet, em Quito, aclamado como herói, Correa adotou um tom desafiador: Hoje, um presidente não claudicou, como fizeram outros covardes. Passada a crise, especialistas em política na América Latina e moradores do Equador consultados pelo Correio apostam em uma radicalização do governo, em retaliação à insurgência policial, e preveem uma caçada à oposição.

Por e-mail, o costarriquenho Juan Carlos Hidalgo expert do Cato Institute (em Washington) , acredita que Correa saiu fortalecido da crise. Aparentemente, ele não cedeu às demandas dos policiais, enfrentou-os e contou com o apoio das Forças Armadas, lembra. A imagem de um líder aturdido e hospitalizado ao ser atacado com bombas de gás lacrimogêneo pode se transformar em um rico capital político. Isso contribuiu para aumentar a popularidade dele no país, o que é preocupante, pois Correa não é um amigo da democracia, observa. Hidalgo acredita que o mandatário equatoriano tentará aproveitar o modo como manteve-se no poder para lançar-se ainda mais contra os adversários.

De acordo com o analista, o próprio histórico de Correa sustenta essa possibilidade. Desde sua chegada ao poder, ele tem atacado e abusado das instituições democráticas e da separação de poderes, comenta Hidalgo. Em 2007, o presidente forçou a destituição de 56 deputados da oposição que se opuseram à convocação de uma Assembleia Constituinte. Quando o Tribunal Constitucional considerou esse processo ilegal, o Congresso, controlado por Correa, decapitou o órgão, critica. Ainda segundo Hidalgo, a Constituição adotada em 2008 concentra os poderes do Estado nas mãos do presidente de forma inconveniente. Há razões para temer que Correa aproveite sua posição para dissolver o Congresso, governar por decreto até novas eleições e caçar a oposição, acusada de golpismo.

Precipitação Cientista político do Centro de Investigações sobre Desenvolvimento e Movimentos Sociais do Equador (Cedime), o equatoriano Jorge León Trujillo pensa que Rafael Correa se submeteu a riscos desnecessários, ao visitar um quartel com milhares de pessoas sublevadas. Em um país que tem uma grande tradição de tolerar protestos, ele se precipitou em colocar o Exército contra a polícia, afirma. Trujil-lo culpa Correa pelo mau gerenciamento da crise. O presidente ganha força, ao sair como herói, mas o drama vivido pelo Equador indica que seu poder foi questionado e perdeu a intocabilidade.

Se Correa escolher as vias da polarização e do enfrentamento, poderá colocar em xeque a estabilidade governamental. O analista do Cedime explica que, dois dias antes da tentativa de golpe, o presidente havia anunciado o desejo de decretar novas eleições parlamentares, a fim de obter a maioria absoluta no Congresso e concentrar todos os poderes. Existe o risco de o governo promover uma espécie de caça às bruxas e se engajar em uma lógica autoritária, com ou sem o Congresso, deixando de lado os problemas reais, diz Trujillo.

Não há por que ter medo. Aquele que caminhou sobre o mar e acalmou tempestades também nos ajudará a superar esses difíceis, mas esperançosos, momentos

Rafael Correa, presidente do Equador, no discurso de posse, em 15 de janeiro de 2007

Golpe inexistente Arquivo pessoal

O Equador tem uma larga tradição de instabilidade e de democracia. Correa tem altíssima legitimidade, visível na popularidade de 60%, apesar de nem sempre respeitar as normas legais. A tragédia da sublevação policial não pôs em risco a democracia ou o governo. Seria um erro vê-la como um complô de golpe de Estado. A polícia acumula, há muitos anos, mudanças institucionais mal definidas. Os políticos trocaram a hierarquia da instituição, o que causou desconfiança e desmotivação

» Jorge León Trujillo, cientista político do Centro de Investigações sobre Desenvolvimento e Movimentos Sociais do Equador (Cedime)

Instabilidade comum Arquivo pessoal

O Equador é um país sumamente instável. Nos últimos 15 anos, teve 10 presidentes. Por isso, a crise de quinta-feira não é anormal. A lição mais valiosa que ela traz está no fato de que um presidente que apelou constantemente para a violência constitucional e o enfrentamento agora se vê vítima dessa violência. O presidente Rafael Correa tem instigado um ambiente combativo. Ontem, um grupo poderoso, como os policiais, reagiu da mesma forma

» Juan Carlos Hidalgo, especialista em América Latina pelo Cato Institute (em Washington)

Sociedade dividida

Morador de Guayaquil, Rob-bye Ron, de 32 anos, diz sentir vergonha do que presenciou na quinta-feira. Fiquei impressionado com a violência e a forma com que as pessoas roubaram os armazéns, lembra, em entrevista pelo microblog Twitter. Para o administrador de recursos humanos, o presidente Rafael Correa precisa se engajar na difícil tarefa de voltar a unir o país. Acho que a democracia em meu país não corre perigo, porque as pessoas se deixaram levar pelo momento. Hoje, menos pessoas pensam como ontem e nosso presidente está fortalecido, comenta.

Robbye conta que o Equador enfrenta uma desordem, ante a divisão da sociedade. Temo muito que as pessoas tentem novamente dar um golpe, acrescenta. A cidade, situada a 500km de Quito, teve vários bancos assaltados na quinta-feira, além de pequenos comércios familiares saqueados. Não é preciso ser gênio para saber que meu país e a América Latina estão enfrentando um momento ruim.

Polícia errada A estudante de desenho gráfico Maria Belen Zavala Luque, de 25 anos, culpa Correa pelo caos de quinta-feira. Ele tem seu setor de apoio, mas não conta com uma maioria, diz. No entanto, a também moradora de Guayaquil condena a mobilização dos policiais. Para ela, o que a categoria fez não tem nome. Minha cidade converteu-se em terra de ninguém. Tivemos milhares de roubos e o país se perdeu, lamenta. Ela crê que Correa terá um longo caminho para obter a paz e a tranquilidade. Não sou correísta, mas estou quase segura de que ele terminará o mandato. Como sempre, terá problemas por conta de sua prepotência.

Para o estudante de eletrônica Jorge Alberto Ramòn Bedoya, de 23 anos, o presidente ainda conta com a simpatia dos cidadãos, o que lhe confere muita força. Apenas uma pequena parte da polícia se rebelou. Correa foi recebido no Palácio de Carondelet com grande afluência de público, lembra o morador de Quito. (RC)

Crítica feroz Arquivo pessoal

A democracia é uma prostituta em meu país. Correa fala sobre ela e a defende, mas não a aplica. Tanto que, na quinta-feira, o único canal de TV que funcionava aqui era o do governo. Para Correa, democracia é obrigar as diferentes emissoras de rádio e de tevê a transmitir apenas o que o governo diz. Democracia, para ele, é criar uma guerra civil, deixando mortos, feridos e desaparecidos. E ele se vende como vítima. Serei sempre uma equatoriana orgulhosa de meu país, mas não de meus governantes

Maria Belen Zavala Luque, 25 anos, estudante de desenho gráfico, moradora de Guayaquil