Título: Câmbio, vilão para poucos
Autor: Prado, Maria Clara R. M. do
Fonte: Valor Econômico, 20/07/2006, Opinião, p. A11

Parece claro a quem acompanha o debate econômico neste ano eleitoral que a valorização do real face ao dólar americano foi escolhido como o principal alvo de ataque tanto por alguns representantes da situação quanto pela oposição. Toma o lugar do tema da taxa de juros depois do consenso de que a tendência de queda da Selic é inexorável.

Taxa de câmbio é assunto que levanta paixões no Brasil. Isso vem desde longínquas eras, quando a economia se limitava à exportação do café e qualquer oscilação cambial podia representar imensos ganhos ou enormes perdas não apenas para os exportadores, mas para o PIB de modo geral.

O Brasil de hoje não é, felizmente, o mesmo do início do século passado. Com o tempo, um significativo mercado interno foi formado, tornando-se o principal sustentáculo da evolução do PIB. Poderia ser muito mais expressivo se a desigualdade não fosse tão acentuada no país e boa parte da camada de baixa renda tivesse já sido agregada ao processo produtivo.

No entanto, a despeito da evolução objetivamente verificada no tamanho do mercado interno, os exportadores ainda conseguem fazer ressoar com grande alarde a pressão pela desvalorização sempre que a moeda nacional aprofunda o processo de valorização. Nada contra essa manifestação. Assenta-se no legítimo direito que tem qualquer segmento da sociedade em defender seus interesses.

O que preocupa é que os consumidores, representantes do segmento mais expressivo na formação do PIB visto pela ótima de demanda, não consigam se expressar da mesma forma tão veemente e audível em defesa da valorização do real. Afinal, a renda alimentada pelo consumo das famílias explica mais de 55% do PIB brasileiro, enquanto que o peso das exportações está por volta de 17% do PIB.

Alguns sempre poderão argumentar que o aumento das exportações contribui para a melhoria da renda, através da geração de mais emprego. Isso é verdade, mas precisa ser bem dimensionado. A economia brasileira é, em grande parte, alimentada pelo próprio mercado interno. Além disso, valorização da moeda nacional sempre significa mais renda no bolso das classes média e média baixa pelo efeito benéfico que tem sobre os preços praticados internamente e isso é fácil de entender: quanto mais o setor produtivo for confrontado com a concorrência externa - seja lá fora, pela via das exportações, seja internamente, pelo impacto das importações - menores condições haverá para a formação de cartéis, por um lado, e para a perpetuação da ineficiência que faz recair sobre a sociedade o preço de custos desnecessários.

Governos e pretendentes a governos não devem esquecer que em economia tudo se equilibra para o bem ou para o mal. As escolhas em favor de um grupo tendem a trazer custos para outro grupo. Não se pode deixar de olhar o todo e de avaliar os efeitos que determinada escolha tem sobre a economia em geral, considerando os aspectos externos e internos, incluindo aqui o comportamento do investimento, da renda nacional, do crédito e da inflação.

-------------------------------------------------------------------------------- Com ou sem rigor monetário, a questão cambial continuará sob pressão no próximo governo, a menos que a desvalorização do real venha pelo pior caminho --------------------------------------------------------------------------------

Essa observação, porém, não vai arrefecer o debate que se levanta para além da questão da taxa propriamente dita. Envolve, a rigor, a essência da política cambial. Aliás, este é o verdadeiro ponto por detrás da discussão: flutuar ou não flutuar, eis a questão!

Portanto, o que está em jogo é algo mais profundo pois tem a ver com o modelo de política monetária adotado a partir de meados de 1999, quando a flutuação cambial foi introduzida junto com o regime de meta de inflação. Um está diretamente ligado ao outro.

O debate em torno do assunto toma a forma de várias correntes. Uns querem aprofundar o escopo da flutuação e apregoam maior abertura cambial. Uma medida nessa direção seria a possibilidade dos exportadores poderem reter no exterior os dólares que recebem pelo pagamento das vendas de seus produtos em outros países. A providência viria, sem dúvida, no rumo da maior liberalização cambial mas, infelizmente, não é com esse objetivo que algumas autoridades do governo federal têm defendido a iniciativa. A intenção que parece estar por detrás da medida é mais simplista: baseia-se na suposição de que o mercado interno de dólares se esvaziaria em parte com a retenção das divisas dos exportadores no exterior e isso seria suficiente para garantir a desvalorização do real em face ao dólar.

Dá a impressão de ser mais um remendo oportunista do que propriamente um passo no sentido efetivo da abertura cambial do país. Se for realmente o que se desconfia, já se pode desde já contar com uma futura proibição dos exportadores manterem seus dólares no exterior na eventualidade de uma crise financeira internacional que torne escasso o fluxo de divisas para o Brasil.

Para além da polêmica que se alimenta dos interesses específicos dos setores mais diretamente envolvidos pela questão cambial, o debate tem sido aprofundado na academia brasileira.

Quem quiser ficar antenado, vale a pena ler dois trabalhos recentemente publicados pela PUC do Rio. O de Márcio Garcia e Bernardo Carvalho, intitulado "Controles Ineficientes sobre Entradas de Capital em Mercados Financeiros Sofisticados: Brasil nos anos 90", procura mostrar que as medidas adotadas na década passada, no sentido de reduzir o fluxo dos capitais de curto prazo através de taxações como o IOF, não surtiram o efeito desejado, pois o capital acabou encontrando formas de contornar as restrições e ingressar no país do mesmo jeito. Vinha, como se sabe, em busca da alta remuneração garantida pela arbitragem entre o câmbio e a taxa de juros.

Em resposta, Gustavo Franco, que naqueles anos esteve no Banco Central, escreveu "Fluxos de Capital para o Brasil, 1992-1998: a natureza e os efeitos dos controles e restrições", publicado pela PUC do Rio. Franco tenta comprovar que as medidas tomadas na época para frear a entrada de capital de curto prazo foram eficazes, ao contrário do que dizem Garcia e Carvalho. Há quem defenda mais ardorosamente a introdução de controles rígidos na movimentação do capital estrangeiro.

Mas que ninguém duvide: com ou sem rigor monetário, a questão cambial continuará sob pressão no próximo governo, a menos, é claro, que o mundo desabe e a desvalorização do real venha pelo pior caminho possível. Aí nem os exportadores terão motivo para festejar!