Título: É difícil, muito difícil, conter a China
Autor: Leo, Sérgio
Fonte: Valor Econômico, 24/07/2006, Brasil, p. A2

Ameaçados pela avassaladora concorrência chinesa, empresários do setor de brinquedos partirão para Pequim, no mês que vem, em uma missão com representantes do governo, indicados pelo Ministério do Desenvolvimento. A viagem marca uma nova estratégia do setor privado em relação aos chineses: embora falem em pedir a aplicação de barreiras, como salvaguarda, contra a importação de brinquedos da China, os executivos do setor partiram para o país inimigo sem detonar essa arma. E o governo parece cada vez menos disposto a comprar briga com os chineses.

É o contrário do que fizeram os fabricantes de óculos, escovas e peças de pedais de bicicleta, que, em maio, abriram processos de salvaguardas, imaginando aumentar o cacife, antes de embarcar para a negociação com os chineses, em que pediram um acordo de restrição voluntária de exportações destinadas ao Brasil. Foram um fiasco as negociações. Desde junho encerrou-se o prazo de consultas, o que obrigaria o governo a abrir oficialmente o processo de investigação para imposição de salvaguardas contra a ameaça chinesa. Desde então, todas as semanas, os setores pedem ao governo extensão do prazo de consultas por mais uma semana. E arrastam as conversas à espera de um improvável gesto condescendente dos chineses.

Pelo contrário, o embaixador da China disse recentemente em entrevista que salvaguardas não são tábua de salvação para setores ineficientes no Brasil. O endurecimento dos chineses nas negociações com os pequenos queixosos (os setores que pedem salvaguardas são uma minúscula parte do comércio entre Brasil e China, não chegam a 0,1% do total) foi acompanhado por gestos de boa vontade do governo de Hu Jintao: recentemente, a China informou ao governo brasileiro a decisão de eliminar restrições à importação de soja por aquele país e o compromisso de comprar até 100 aeronaves da Embraer (metade fabricada no Brasil, metade na fábrica da empresa em território chinês, associada a uma estatal local).

-------------------------------------------------------------------------------- Setor de brinquedos quer negociar --------------------------------------------------------------------------------

Esses compromissos da China dificultaram ainda mais a aprovação, pela Câmara de Comércio Exterior (Camex), de alguma medida de salvaguarda contra os chineses, para proteger setores de pequena expressão econômica. Os pedidos dos empresários, se acatados pela Secretaria de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, têm ainda de ser aprovados pelos sete ministros da Camex, onde considerações políticas e estratégicas se somam às econômicas. O país, além disso, é hoje o terceiro maior comprador do Brasil, de quem importou US$ 3,7 bilhões no primeiro semestre.

Ninguém aposta seriamente no sucesso das demandas dos fabricantes de óculos de sol, escovas e pedivela (a peça de bicicleta ameaçada pela concorrência chinesa). Às razões políticas e estratégicas eventualmente levantadas pelo Itamaraty para evitar atritos com os chineses, agora os ministérios da Agricultura e do Desenvolvimento acrescentam os interesses dos produtores de soja (que têm seu maior mercado na China) e os da Embraer, além da poderosa Vale do Rio Doce. A Vale tem, nos chineses, um de seus principais parceiros mundiais, como compradores de minério e associados em investimentos locais.

O setor de brinquedos é bem maior que os outros responsáveis por pedidos de salvaguarda contra a China, ainda que também seja pequeno comparado à dimensão das relações comerciais sino-brasileiras. Tem um mercado próximo a US$ 150 milhões anuais. Só no primeiro semestre deste ano, porém, as importações de brinquedos (incluídos videogames) chegaram a US$ 34,1 milhões. Esse valor é quase cinco vezes maior que no mesmo período de 2003 e, embora venha caindo o ritmo de crescimento das vendas, é cerca de 30% superior ao registrado entre janeiro e junho de 2005. Os fabricantes querem salvaguardas, não dizem se sob a forma de cotas, de aumento de tarifas ou limite de peso total das importações. Mas não devem pedir essa proteção, enquanto não esgotarem as vias diplomáticas. Tarefa colossal.

No governo e setor privado, espera-se que, ao apelar para uma negociação amistosa, sem ameaças nem processos em curso, os chineses mostrem alguma flexibilidade e que estimulem as empresas do país a aceitarem alguma espécie de acordo de restrição de vendas ao mercado brasileiro, congelando o volume de exportações no patamar atual. O acordo, de pouca expressão econômica, evitaria criar um irritante na relação bilateral. É uma estratégia de resultado incerto e pouco provável, mas parte da constatação de que a única saída realmente inaceitável para os chineses é a aplicação de salvaguardas contra suas mercadorias.

Ao entrar na Organização Mundial do Comércio (OMC), a China comprometeu-se a aceitar salvaguardas especiais contra seus produtos, com regras diferentes para produtos têxteis e para as demais mercadorias. O Brasil, com a ameaça de salvaguardas contra têxteis chineses, seguiu o exemplo de outros grandes parceiros comerciais com a China e obteve um acordo voluntário de contenção de exportações. Até agora, porém, ninguém arrancou da administração Hu Jintao compromisso semelhante em relação a outros produtos, nem levantou salvaguarda contra esses setores. A China não quer abrir precedente, nem para uma pedivela, que deve representar um dígito muito à direita da vírgula nas estatísticas de comércio exterior do país.

Para os pequenos produtores apavorados com a concorrência da China, resta apelar para outro mecanismo de defesa comercial, já absorvido pela diplomacia chinesa, as medidas antidumping. São processos que também terão de passar pela Camex, com oposição dos chineses, mas com uma carga política bem menor. Curiosamente, apesar das insistentes queixas dos críticos cabeçudos, que insistem em tratar o assunto como em torcida de futebol, como o governo não regulamentou até hoje o reconhecimento político da China como uma economia de mercado, os processos antidumping correm normalmente e podem até usar preços de outros países como parâmetro de comparação, para brecar a invasão das pechinchas que vêm da Ásia.