Título: Salvaguardas entre Brasil e Argentina seguem no papel
Autor: Landim, Raquel e Braga, Paulo
Fonte: Valor Econômico, 24/07/2006, Brasil, p. A3

Quase seis meses após formalizarem um esquema de limitação do fluxo comercial, Brasil e Argentina não parecem entusiasmados para colocá-lo em prática. Empresários argentinos, que clamavam pela medida, agora preferem os acordos de restrição voluntária. Os governos dos dois países, por sua vez, sequer regulamentaram o mecanismo internamente. "Depois que assinamos o acordo, nunca mais falei desse assunto", reconhece um negociador brasileiro.

As negociações do Mecanismo de Adaptação Competitiva (MAC) demoraram um ano e meio, custaram intenso esforço diplomático e provocaram desgaste do governo brasileiro junto ao setor privado. O MAC foi proposto pela Argentina em setembro de 2004 como uma forma de impedir que seu mercado fosse "invadido" pela produção brasileira em setores sensíveis. Depois de uma forte pressão do presidente Néstor Kirchner, o instrumento foi finalmente assinado em fevereiro desse ano.

Desde o início das negociações, contudo, mudanças na conjuntura econômica contribuíram para que as tensões comerciais se acalmassem. O real se valorizou em relação ao peso, diminuindo a competitividade dos produtos brasileiros. A Argentina manteve uma taxa de crescimento de 9% ao ano, muito superior aos atuais 3,5% do Brasil. A energia elétrica está custando na Argentina um terço do que custa no Brasil.

Esse cenário dificulta a comprovação de que as importações brasileiras provocam dano à indústria argentina, condição necessária para aplicação do MAC. A atual conjuntura também pode favorecer a solicitação de salvaguardas pelo Brasil e não pela Argentina. "Sempre deixamos claro que o MAC parece um benefício para a indústria argentina, mas também é aplicável para nossa agricultura", diz Antônio Carlos Costa, diretor do departamento de assuntos comerciais do Ministério da Agricultura.

"O governo demorou um ano negociando e saiu algo que não reflete mais a necessidade dos empresários", avalia Mário Marconini, consultor sênior da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e presidente-executivo do conselho de relações internacionais da Fecomércio-SP.

Ele afirma que há um "descolamento" entre o que o ocorre no Mercosul e no mercado, porque o bloco negocia instrumentos mais políticos do que econômicos. Para ele, o MAC agora é apenas uma "carta na manga" dos argentinos e uma "guilhotina" para o Brasil - caso a conjuntura macroeconômica mude.

"O MAC não é um instrumento de curto prazo", disse ao Valor o secretário de Indústria argentino, Miguel Peirano. Segundo ele, é função do mecanismo dar previsibilidade a empresários de seu país, sem eliminar os acordos privados. Peirano lembrou que as regras do MAC prevêem espaço para que os setores privados entrem em acordo antes de que sejam adotadas as salvaguardas, mas não mencionou o fato de que, para que isso ocorra no contexto do mecanismo, é necessário haver ao menos um forte indício de que um setor está sofrendo dano, inclusive com a apresentação formal de informações que comprovem essa alegação.

Questionado sobre quando o MAC entrará em vigor, Peirano disse que as salvaguardas ainda precisam passar por uma regulamentação técnica, cujo trâmite também tem cronograma indefinido. Alguns especialistas em comércio internacional afirmam que basta um decreto presidencial para regulamentar o mecanismo, pois trata-se de um protocolo adicional a um acordo já assinado entre Brasil e Argentina. Outros defendem que é necessário a aprovação do Congresso. O governo brasileiro também não informou porque o MAC não foi regulamentado.

O empresariado argentino costuma descrever o MAC como um instrumento para pressionar o Brasil a aceitar os acordos privados, e não como uma ferramenta que elimine a necessidade de sua existência. "É uma boa ferramenta de negociação para que os setores sentem-se à mesa", afirmou Aldo Karagozian, presidente da Fundação Pro-Tejer, um grupo de lobby do setor têxtil argentino. O dirigente reconhece que os conflitos diminuíram nos últimos meses, mas ressaltou que "o Brasil continua sendo uma luz amarela".

Alberto Sellaro, presidente da Câmara Argentina do Calçado, considera que o MAC pode ser útil "quando houver conflitos graves". Mas ele afirma que, neste momento, o Brasil terá de aceitar a manutenção do esquema atual, de cotas. Sellaro defende que o mercado seja resguardado para que os produtos argentinos possam suprir o crescimento.

Os empresários brasileiros estão adotando diferentes estratégias para tentar resistir à pressão argentina para renegociar os acordos de restrição voluntária de comércio. Os fabricantes de eletrodomésticos, por exemplo, preferem não sentar na mesa de negociação. "Em função da existência do MAC, não é necessário falar em prorrogação dos acordos", afirma Paulo Saab, presidente da Associação Nacional dos Fabricantes Eletroeletrônicos (Eletros). Convidado a participar da última reunião com os argentinos esse mês, o setor não compareceu.

"Já cumprimos os três anos da nossa MAC voluntária", diz o diretor-presidente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil (Abit), Fernando Pimentel. Ele se refere ao acordo de restrição para as exportações de denim em vigor pelo terceiro ano consecutivo. Segundo ele, "o MAC foi uma pressão vitoriosa dos argentinos, mas com a Argentina crescendo 9%, o argumento está esvaziando".

A Argentina solicitou ao Brasil a negociação de um acordo de restrição das exportações de fios acrílicos. A Abit recusou o pedido porque está enfrentando problemas com a aduana argentina, que estabelece preços mínimos de importação mais altos para o Brasil do que para a Ásia.

Os fabricantes de calçados não vêem outra alternativa a não ser negociar com os argentinos. Eles participaram da última reunião marcada pelos governos dos dois países. "Se não negociarmos, a Argentina continua o garrote. É o pior cenário", afirma Heitor Klein, diretor-executivo da Associação Brasileira dos Fabricantes de Calçados (Abicalçados).

A Argentina está adotando licenças não-automáticas de importação, que obrigam o Brasil a seguir a risca o acordo de restrição voluntária das exportações e calçados a 13,2 milhões de pares em 2006. Com a medida , o Brasil está perdendo espaço para terceiros mercados. Por conta dos acordos, a participação brasileira nas importações argentinas caiu de 87% em 2003 para 53% atualmente. Já a fatia de terceiras origens, principalmente da Ásia, subiu de 13% para 47% no período.

Oficialmente, o governo brasileiro está defendendo o fim dos acordos de restrição voluntária do comércio. "Os interesses setoriais empresariais historicamente gostam que seus negócios sejam protegidos e os fornecedores não sejam", disse o ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan. Ele considera natural a resistência argentina, mas argumenta que as "medidas de emergência do passado devem ser superadas".

Furlan afirmou, ainda, que não discutiu o assunto no encontro que teve com a ministra da Economia da Argentina, Felisa Miceli, na última sexta-feira. O ministro brasileiro demonstrou compreensão pela resistência argentina. "Todo mundo gosta de proteção, de um colinho, não gosta?", perguntou a jornalistas, que acompanhavam a cúpula do Mercosul, em Córdoba.