Título: Elites, conveniências e instituições políticas
Autor: Couto, Cláudio
Fonte: Valor Econômico, 24/07/2006, Política, p. A6

Quando foi aprovada, em 4 de junho de 1997, a emenda da reeleição dos chefes do Executivo foi apresentada por seus defensores tucanos como uma solução institucional adequada às necessidades de nosso regime presidencialista. Ainda hoje, na própria página do PSDB na Internet, dentro do texto que relata a história do partido segundo a versão oficial da agremiação, a referência que se faz ao instituto da reeleição é a seguinte: "Em meio ao complexo andamento das reformas colocou-se a questão da possibilidade de reeleição para os cargos executivos, uma tendência internacional". Talvez o partido precise atualizar seu website para fazer com que corresponda às atuais convicções de suas lideranças mais representativas ( http://www.psdb.org.br/opartido/ahistoria.asp ). A avaliação da página do PSDB na web é coincidente à da ex-primeira dama, Ruth Cardoso, que no começo de 1997, segundo o Jornal do Brasil de 7 de janeiro daquele ano, afirmou à TV Bandeirantes que considerava a reeleição dos chefes do Executivo "um mecanismo importante ´no mundo moderno´." Ainda segundo o jornal, "D. Ruth argumentou que é importante haver condições para garantir continuidade na administração pública. ´Sou a favor da emenda para que o Brasil ganhe esse instrumento´", teria dito a primeira dama tucana ( http://www.radiobras.gov.br/anteriores/1997/sinopses_0701.htm ).

É curioso que menos de dez anos após a aprovação do referido instrumento e com apenas uma eleição presidencial para servir de experiência (a do tucano FHC), criou-se no partido a férrea convicção de que o referido instrumento já não serve mais. Esse parece ser um dos poucos pontos de concordância entre tucanos e petistas no plano doutrinário, pois para o senador Sibá Machado (PT-AC), propositor da emenda atualmente em discussão, "para o Brasil, a experiência da reeleição não foi muito bem sucedida. Ao retirar o instituto da reeleição, os candidatos poderão disputar as eleições em pé de igualdade". Daí se depreende, portanto, que a reeleição causa uma iníqua desigualdade na disputa entre opositores e situacionistas. Difícil é saber a qual experiência mal-sucedida desse ponto de vista o senador petista se refere: se à da reeleição de FHC ou à de Lula - tão freqüentemente apontada pelos tucanos como um (mau) exemplo de uso da máquina a favor do candidato-presidente.

-------------------------------------------------------------------------------- Acabar com a reeleição é apenas mais um casuísmo --------------------------------------------------------------------------------

A favor dos petistas consta o fato de que sempre se opuseram ao instituto da reeleição - Lula aí incluído. Embora o PT na oposição tenha atacado quase tudo que passou a defender e a aplicar quando se tornou governo (não sendo portanto um partido que prime pela coerência), este parece ser um dos poucos temas nos quais os petistas não mudaram de opinião. Já no caso dos peessedebistas, não se pode falar de guinada programática, pois tanto a posição outrora defendida como a atual apenas correspondem à conveniência momentânea de suas principais lideranças. À época, advogar o "instituto da reeleição" como uma tendência do mundo moderno era conveniente para assegurar a continuidade do partido no poder, reelegendo FHC. Hoje, asseverar que tão moderno instituto não funciona no Brasil (apesar de jamais se comprovar isto) é conveniente para equilibrar a disputa interna entre os diversos presidenciáveis da agremiação.

Não foi casual que apenas um dia depois de Geraldo Alckmin declarar-se favorável à reeleição, Tasso Jereissati - presidente do partido - reativou a emenda de Sibá Machado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. O candidato tucano ao Planalto estaria rompendo o pacto interno segundo o qual, caso eleito, deveria abrir mão de recandidatar-se em 2010 para que outros postulantes possam disputar a cadeira presidencial pelo partido. Como a renúncia de José Serra à prefeitura de São Paulo para concorrer aos Bandeirantes demonstra que compromissos desse gênero não são cumpridos mesmo quando registrados em cartório, a única alternativa disponível para garantir a unidade tucana na dança das cadeiras seria novamente mudar a constituição, desfazendo o que esse mesmo partido trabalhou para que fosse feito poucos anos antes. Noutras palavras, o atual ímpeto tucano de reformar a constituição, alterando decisivamente as regras da disputa política, tem o propósito de adequar à Carta Magna às conveniências da disputa política interna ao partido.

Numa democracia as regras de disputa eleitoral devem de fato adequar-se àquilo que as elites políticas considerem aceitável. Impor regras que os políticos profissionais percebam como iníquas é, sem sombra de dúvida, alimentar as fontes da instabilidade institucional. Todavia, isto não implica afirmar que as regras mais apreciadas pelas elites políticas sejam necessariamente as melhores, ou mesmo aceitáveis para o conjunto dos cidadãos. Um exemplo disso eram as normas permissivas sobre o recesso parlamentar, que apenas foram modificadas recentemente contra a vontade dos parlamentares e graças a uma forte pressão da opinião pública, que as considerava intoleráveis.

O instituto da reeleição foi muito pouco testado em nosso país. Apenas uma vez no plano federal e no máximo duas vezes em estados e municípios. Não temos registro de que problemas maiores do que os que ocorriam antes da reeleição tenham se verificado. Suprimir esse instituto agora apenas significará - sem apresentar qualquer justificativa plausível - retirar do eleitorado a oportunidade de reconduzir ao cargo aqueles que porventura considere que mereçam, fazendo de nossas instituições democráticas um joguete à disposição das manobras casuísticas da elite política. Definitivamente, não é dessa forma que se constrói um "Brasil decente".