Título: Decepção e prejuízos com a suspensão de Doha
Autor: Moreira, Assis
Fonte: Valor Econômico, 25/07/2006, Brasil, p. A3

Pascal Lamy, diretor-geral da OMC, deixa plenário de reuniões da entidade: "Hoje todos são perdedores" A suspensão da Rodada Doha - anunciada ontem pelo diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Pascal Lamy - adia por tempo indeterminado o desmantelamento de barreiras agrícolas e industriais que movimentariam bilhões de dólares de novos negócios entre os países. Um acordo poderia gerar entre US$ 126 bilhões e US$ 260 bilhões, dependendo das estimativas, com corte global de tarifas, menos subsídios e custo de frete. Todas as negociações da Rodada foram suspensas, não apenas aquelas que envolvem as áreas agrícola, industrial e de serviços, mas também os temas de facilitação de comércio, revisão de acordos de antidumping, de meio-ambiente etc.

A suspensão atinge em cheio a estratégia do Brasil de expandir as exportações e aumentar a influência política do governo Luiz Inácio Lula da Silva. Com o G-20, grupo formado por países em desenvolvimento mais fortes, o país fez pesar a voz nas discussões e alimentou ambição palaciana de mudar "a geografia comercial" mundial.

Ontem, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, constatava a "perplexidade" provocada pelo fiasco de Doha. No caso da política externa brasileira, ela toma uma dimensão maior no rastro da ausência de acordos comerciais bilaterais relevantes, da falta de assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas e da humilhação na eleição para diretor-geral da OMC no ano passado.

"Este é realmente um momento triste", disse Amorim. "Estou especialmente frustrado porque estávamos perto de um acordo que desta vez podia ter realmente o selo de desenvolvimento", afirmou.

A grande questão, ontem, era "se" e "quando" a Rodada será reativada. Amorim foi o mais otimista: acha que vai demorar dois a seis meses. Kamal Nath, o ministro indiano do comércio, falou de "anos", notando que a negociação está entre "cuidados intensivos e o crematório". Lamy, que conhece os limites de cada um, se indagava mesmo se ela seria retomada.

A Rodada Doha foi lançada na capital do Catar dois meses depois dos ataques terroristas nos EUA de 11 de setembro de 2001. Depois, os negociadores perderam todos os prazos, diante das divergências. Sempre estiveram sob a pressão de tentar concluir a negociação até o final deste ano, antes da expiração do TPA americano, pelo qual a administração dos EUA pode negociar acordos comerciais sem serem emendados no Congresso.

O diretor-geral da OMC alertou que o fiasco dá um sinal negativo para o futuro da economia mundial e o perigo de ressurgimento do protecionismo, quando a globalização tem abalos econômicos e sociais e a instabilidade geopolítica aumenta. Ao reunir os 146 países, ele acrescentou : "Hoje, todos são perdedores". Inclusive a própria OMC, que perde credibilidade e tem um futuro incerto.

Analistas concordam sobre duas conseqüências imediatas: mais acordos bilaterais e mais disputas entre os países. De foro negociador, a entidade passará a examinar mais confrontos entre as nações. Pois quem não conseguiu o que queria porque a negociação está engavetada, pode agora recorrer ao Órgão de Solução de Controvérsias. Amorim admite, como todos os outros ministros, que haverá mais conflitos, mas não citou nenhum caso em particular que o Brasil pretenda apresentar.

A suspensão da rodada se tornou inevitável depois de reunião ministerial do G-6, formado por Brasil, EUA, UE, Japão, Austrália e Índia. O jogo de acusação ontem foi geral. UE, Índia, e o Brasil mais timidamente, apontaram o dedo para os EUA. "Os EUA não quiseram aceitar nem mesmo reconhecer flexibilidades mostradas pelos outros", reclamou Peter Mandelson, comissário europeu de comércio. "Esse colapso, que tem alto custo, poderia ter sido evitado".

Ele contou que a reunião foi a melhor desse tipo até se tornar a pior. Na discussão sobre acesso ao mercado (corte de tarifas, cotas), a UE ofereceu cortar, na média, suas tarifas em 51,5%. A Índia declarou-se pronta a negociar tratamento para produtos sensíveis que terão corte tarifário menor. Nas discussões técnicas, Washington tinha admitido 3% a 4% de produtos sensíveis comparados à proposta anterior de 1% das linhas tarifárias. A UE, por sua vez, disse que estava preparada para baixar de 8% para algo entre 4% a 5% sua demanda.

Quando chegou a vez de se discutir subsídios domésticos, Lamy deixou claro que os EUA deveriam mostrar flexibilidade e clareza, como os outros fizeram antes. A resposta da representante comercial Susan Schwab e do secretário de agricultura Mike Johanns foi de que não reconheciam nenhum acesso real aos mercados no que estava na mesa, e não podiam assim colocar elevar a oferta sobre subsídios.

Foi a vez de Amorim intervir. Ele notou que o Brasil sequer pode mostrar qual sua eventual flexibilidade prometida pelo presidente Lula, porque a discussão sobre produtos industriais nem tinha ocorrido ainda. Uma hora depois, Lamy constatou o inevitável e todos concordaram que a rodada deveria ser suspensa.

"A razão básica da suspensão é que os EUA acreditam que precisam compensar dólar por dólar na área agrícola", disse Mandelson. Lamy recomendou que sobretudo os países com maior influência pensem sobre as conseqüências de suas ações.

A esperança dos mais engajados é a experiência histórica. Em dezembro de 1990, houve idêntico colapso na Rodada Uruguai, numa reunião em Bruxelas. Arthur Dunkel, então diretor do Gatt, foi orientado a consultar entre os países e produzir um texto de entendimento entre os países. Um ano depois, foi sua proposta que levou a um acordo. A situação agora é diferente, tão grande é a divergência entre os países exportadores e importadores. "Eu não aconselharia alguém a cometer suicídio", retrucou Celso Amorim ao ser indagado sobre um possível "texto Lamy" no segundo semestre.