Título: A guerra civil muçulmana
Autor: Yamani, Mai
Fonte: Valor Econômico, 25/07/2006, Opinião, p. A11

Estará a cisão entre sunitas e xiitas no Oriente Médio agora mais aprofundada do que o antagonismo entre Israel e árabes? O leitor poderia pensar que sim, considerando a reação de alguns governos árabes à decisão do Hezbollah de atacar Israel. Ao mesmo tempo em que as bombas israelenses caíam sobre Beirute e Tiro, a Arábia Saudita, possivelmente o mais conservador dos Estados muçulmanos árabes, condenou abertamente as ações do xiita Hezbollah instigando o conflito com Israel. Nunca antes na história do conflito árabe-israelense um Estado que se considera líder dos povos muçulmanos árabes apoiou Israel tão abertamente.

Além disso, a ruptura da Arábia Saudita em relação a ao Hezbollah não é um acontecimento isolado. Egito e Jordânia também já condenaram taxativamente o Hezbollah e seu líder, o xeque Hassan Nasrallah, por seu aventureirismo.

O que há por trás desse surpreendente desdobramento? Estaremos vendo uma mudança fundamental nas relações entre o nacionalismo árabe e o sectarismo islâmico? Estará o governo sunita da Arábia Saudita mais preocupado e amedrontado pelo Islã xiita do que comprometido com a unidade árabe e a causa palestina?

As denúncias árabes contra o Hezbollah sugerem que a cisão sectária muçulmana, já evidente na violência diária no Iraque, está se aprofundando e intensificando em todo o Oriente Médio. O desejo do presidente George W. Bush, de sacudir as congeladas sociedades do mundo árabe, pretendia jogar as forças da modernização contra os tradicionais elementos das sociedades árabes e islâmicas. Em vez disso, ele parece ter desencadeado as forças mais atávicas na região. A abertura dessa caixa de Pandora pode ter aberto as portas para uma nova e até mesmo mais sangrenta era de violência generalizada, algo que talvez só possa ser denominado "Guerra Civil Muçulmana".

Essa cisão xiita-sunita existe desde as origens do Islã, mas o isolamento geográfico e étnico do Irã xiita não-árabe, juntamente com o predomínio dos países árabes sunitas sobre suas minorias xiitas, manteve essa rivalidade praticamente em segundo plano. Essas tensões diminuíram ainda mais em meio à maré de "islamização" criada pela revolução iraniana, pois em sua esteira a identidade sectária árabe sunita foi jogada ainda mais para os bastidores, à medida que surgiu uma assertividade "islâmica" generalizada.

Tudo isso mudou quando a Al Qaeda, uma força terrorista sunita que se apóia substancialmente na ideologia e "recursos humanos" wahabistas sauditas, desfechou seus ataques nos EUA em setembro de 2001. Uma vertente especificamente sunita do Islã militante então pôs-se em marcha. Quando os EUA iniciaram as guerras contra o Taleban sunita no Afeganistão e o regime iraquiano sunita, essa nova variante sunita radical tornou-se ainda mais ousada.

-------------------------------------------------------------------------------- Cidadão saudita assiste à TV Al Jazeera e o que vê é o sangue árabe, e não apenas xiita, sendo derramado, e o Hezbollah como o grupo heróico que resiste --------------------------------------------------------------------------------

Os árabes sunitas que vêm recentemente se afirmando na região percebem Israel e o Ocidente não como a única ameaça, sendo a outra o denominado "crescente xiita" - o arco que se estende do Líbano ao Irã, através da Síria e do Iraque, habitado pelos supostamente hereges xiitas. Os governantes da Arábia Saudita, como guardiães dos lugares mais sagrados da fé muçulmana, em Meca e Medina, talvez sintam essa ameaça mais agudamente.

Aos olhos sunitas, os xiitas não apenas dominam as ricas áreas petrolíferas iranianas, iraquianas e na região oriental da Arábia Saudita, como também estão - por meio das ações do Hezbollah - tentando usurpar o papel de "protetor" do sonho central de todos os árabes, a causa palestina. Em virtude de a família real saudita basear sua legitimidade numa forma rígida de Islã sunita e questionar a lealdade de sua população xiita foi que o reino voltou-se contra o Hezbollah.

Ironicamente, são os EUA, histórico protetor da Arábia Saudita, que tornaram possível a potencialização dos xiitas, ao derrubar Saddam Hussein e levar partidos xiitas ao poder no Iraque. O governo Bush parece se dar conta do que fez: à medida que o arco xiita se ergue no leste do mundo muçulmano árabe, os EUA estão tentando fortalecer sua proteção ao arco sunita - Egito, Jordânia e Arábia Saudita - no oeste da região. Israel, no passado um inimigo implacável da causa árabe, agora parece estar inserido nessa estrutura defensiva.

Mas tal postura defensiva tende a ser instável, devido ao sentimento pan-árabe. Hoje, o cidadão comum saudita está com os olhos pregados na Al Jazeera e outras redes de TV árabes via satélite para acompanhar os acontecimentos em Gaza e no sul do Líbano. Eles vêem sangue árabe (e não xiita) sendo derramado - e apenas o Hezbollah lutando para reagir. Aos olhos dessas pessoas, o Hezbollah tornou-se um modelo heróico de resistência.

Isso está fazendo com que o Estado saudita aprofunde a cisão sunita-xiita. Depois da denúncia oficial do reino contra o Hezbollah, o Estado saudita exortou seus clérigos oficiais wahabistas a declarar fatwas condenando o Hezbollah como xiitas dissidentes e hereges. Essas condenações podem apenas acentuar as divisões sectárias na Arábia Saudita e na região.

À medida que esses antagonismos aprofundam-se, será que os regimes sunitas passarão a crer que necessitam de seu próprio Hezbollah para combater por seu lado? Se isso for o que eles concluírem, não precisarão olhar para muito longe, pois muitos desses combatentes já foram treinados - pela Al Qaeda.

Mai Yamani, autora de Cradle of Islam (Berço do Islã), seu livro mais recente, é pesquisadora sênior da Chatham House, o Instituto Real de Questões Internacionais. © Project Syndicate 2006. www.project-syndicate.org