Título: A mídia e as ofertas públicas
Autor: Shayer, Fernando
Fonte: Valor Econômico, 28/07/2006, Opinião, p. A10
Nas recentes ofertas públicas de ações, têm causado grande polêmica o conteúdo e a aplicação das "normas de conduta" previstas na Instrução CVM 400, em especial aquela que obriga a emissora das ações, o ofertante e os demais envolvidos a abster-se de se manifestar na mídia sobre a oferta ou o ofertante (art. 48, IV).
A polêmica não surpreende. Pela lei do mercado de valores mobiliários, a CVM deve exercer suas atribuições para diversas finalidades, nem sempre facilmente conciliáveis. De um lado, ela deve promover o estímulo à formação de poupança e a sua aplicação em valores mobiliários, bem como a expansão e o funcionamento regular do mercado de ações (Lei 6385, art. 4º, I e II). De outro, ela deve assegurar o acesso do público a informações sobre os valores mobiliários e os emissores (inciso VI do mesmo artigo). O equilíbrio que permite a maximização da eficiência do mercado reside no ponto em que o maior número de investimentos seja feito com base em informação confiável e de boa qualidade.
Contudo, a aplicação prática dessa teoria é, na maior parte dos casos, bastante problemática, não só no Brasil, como também em mercados bem mais tradicionais. Por exemplo, no que diz respeito à divulgação de informações em ofertas públicas, foi apenas bem recentemente, em dezembro de 2005, que a SEC aprovou alterações bastante profundas que relaxam as "normas de conduta" norte-americanas para determinados emissores, indicando que o tema não é apenas controverso, mas também dinâmico (ver "Securities Offering Reform", www.sec.gov ). No caso brasileiro, há também a ressalva de que a Instrução CVM 400 é anterior à retomada do mercado de IPOs e, portanto, o seu texto não se beneficiou da experiência acumulada por todos, inclusive a CVM, nas dezenas de operações ocorridas desde 2004. É com base nesse aprendizado e na experiência internacional que essas normas tenderão, cada vez mais, a ser "temperadas".
Para assegurar que o investidor possa tomar uma decisão informada de investimento, a Instrução CVM 400 usa como ferramenta principal o "prospecto". Todas as informações relevantes devem estar nele concentradas, sob pena de severas sanções administrativas (além de eventual responsabilidade civil e penal). E os demais documentos da oferta devem direcionar os leitores a tal documento, recomendando expressamente a sua leitura.
A mídia é um meio de disseminação de informação diferente do prospecto. Em teoria, ela poderia ser usada pelo ofertante para a divulgação de informações incompletas ou tendenciosas, levando o investidor a erro e a desvios na formação do preço. Contudo, ao fazer isso, o ofertante estaria sujeito às sanções aplicáveis à prestação de informações inverídicas ou incompletas no prospecto, e a CVM poderia, dentre outras medidas, suspender a oferta, já que os artigos 49 e 56 da Instrução CVM 400 cobrem qualquer informação "fornecida ao mercado durante a distribuição" (e não apenas as constantes do prospecto). E sendo assim, restaria a pergunta: a que fim serviria a vedação a toda e qualquer manifestação na mídia?
A mídia desempenha um importante papel no mercado de valores mobiliários, particularmente o secundário. Por exemplo, ocorrendo um fato que seja relevante para a sua situação financeira, ativos ou passivos de uma companhia aberta, a manifestação pela mídia de seu diretor-presidente pode auxiliar o minoritário na decisão de negociar as ações. Nesse caso, a companhia estaria obrigada pela Instrução CVM 358 a divulgar publicamente, pela mídia impressa, um anúncio de fato relevante e, portanto, não deveria haver motivos para que não se pudesse também esclarecer o assunto de forma mais detalhada, por meio de entrevista.
-------------------------------------------------------------------------------- O ofertante pode utilizar a mídia para divulgação de informações incompletas, levando investidor a erro ou a desvios dos preço --------------------------------------------------------------------------------
A ampla disseminação de informações impacta significativamente a formação dos preços no mercado, inibe ações nocivas como o insider trading. Talvez o princípio mais relevante do mercado seja o do full disclosure, e a mídia, pelo seu alcance, contribui muito para a sua adequada aplicação.
Mas não basta a quantidade, é preciso atenção com a qualidade da informação disseminada. O que se busca evitar, na realidade, é que a mídia seja usada como parte dos esforços de venda das ações, ou seja, como um canal publicitário da oferta, e que o leitor seja instigado a investir com base em informações tendenciosas, manipulativas, ou simplesmente incompletas.
O ponto é que se a Instrução CVM 400 já proporciona meios à CVM para suspender ofertas cujas manifestações sejam dessa natureza, a vedação ex ante, absoluta, é incorreta, pois impede outras declarações benéficas ao mercado. É preciso separar o joio do trigo, tarefa árdua, que cabe à CVM, no caso concreto. Baseando-se nos precedentes mais recentes, pode-se concluir que a CVM já tem, em larga medida, interpretado o artigo 48, IV de maneira não literal, aplicando-o com muito mais foco no conteúdo do que propriamente na ocorrência da manifestação.
Ainda que essa conclusão seja correta, na ausência de alteração expressa desse dispositivo, ou de um parecer de orientação informando os critérios específicos de sua aplicação, permanecem o suspense e a insegurança jurídica, que têm um efeito adverso importante sobre o mercado, especialmente o secundário, cuja eficiência é altamente dependente do fluxo adequado de informação sobre as companhias. Nessa matéria, a prevenção seria mais benéfica do que a punição, na educação dos agentes.
Em qualquer caso, seja qual for o caminho escolhido pela CVM para que sejam evitados abusos, o relaxamento da vedação poderia limitar-se: 1) a manifestações quanto à emissora, objetivando esclarecer fatos ou atos relevantes, de teor necessariamente sereno, factual, histórico, avalorativo, não-prospectivo, não-publicitário e não-tendencioso; e 2) apenas a companhias abertas, ou cobertas por analistas de investimentos (ou seja, seriam sempre vedadas no caso de IPOs ou ofertas de companhias cujas ações têm pouca liquidez). Com relação a determinadas manifestações, poderia também ser útil à companhia tomar as medidas necessárias junto ao respectivo órgão de imprensa para que a notícia indicasse expressamente os locais (físicos e virtuais) em que os leitores poderiam obter o prospecto, direcionando-os a tal leitura.
Fernando Shayer é sócio do escritório Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados, graduado em Direito (PUC) e Economia (USP) e mestre em Direito (Columbia University).