Título: Ásia não permanecerá à margem
Autor: Jonquières, Guy de
Fonte: Valor Econômico, 28/07/2006, Opinião, p. A11

A rodada comercial mundial de Doha praticamente terminou, não com um estrondo, mas sim com um estalido. Embora ainda não clinicamente morta, ela está "entre a UTI e o crematório", nas palavras de Kamal Nath, ministro do Comércio da Índia. Pode-se tentar uma ressuscitação, mas o prognóstico parece pessimista. O mandato do Executivo americano para negociar acordos comerciais sem submetê-los ao Congresso expira em menos de um ano, e quase certamente necessitaria ser estendido para fechar algum acordo proveitoso. Para aceitar isso, um Congresso cético desejaria ver muito mais vantagens sobre a mesa de negociações do que existem hoje - ou que provavelmente existirão em curto prazo.

O colapso da rodada anterior, em Cancún, em 2003, foi largamente atribuído à crescente ingovernabilidade da Organização Mundial de Comércio (OMC), tolhida por uma preponderância de países mais pobres que não dispõem de qualquer agenda coerente, mas tendem prontamente a valer-se de seu poder de veto. O colapso nesta semana, porém, foi de um sabor mais clássico: um impasse envolvendo a agricultura - o bicho-papão mais idoso no terrenos da liberalização comercial -, que muitos atribuem exclusivamente à intransigência americana.

Seja tal acusação justificada ou não, as limitações domésticas à flexibilidade negociadora americana criaram um vácuo de liderança que ninguém mais mostrou-se disposto, ou capaz, de preencher. Não a União Européia (UE), palco de cisões internas entre liberais e protecionistas; não o Japão ou a Índia, cuja prioridade é impedir importações de produtos agrícolas; nem a China, apesar de sua dependência de exportações e de seu anseio por glória mundial. Na realidade, todos os maiores atores na OMC são, em algum grau, culpados.

Após Cancún, houve sugestões de que membros liberais da OMC deveriam marchar solidários, estendendo incondicionalmente a todos outros quaisquer acordos firmados. Isso agora parece fantasioso. Como pode haver "coalizão dos comprometidos", quando estes são tão poucos? Igualmente otimista é a idéia de que teria sido mais fácil politicamente vender a idéia de liberalização, caso vendida honestamente, explicitando realmente de que se trata: uma maneira de gerar ganhos econômicos barateando as importações.

O problema é que os ganhos, grandes no total, são tão escassamente distribuídos que resultam quase imperceptíveis para a maioria dos beneficiários. Além disso, bens comerciáveis internacionalmente, como produtos alimentícios e bens de consumo durável, respondem por fração cada vez menor de gastos familiares em países ricos, onde há mais consumidores ativistas. Quantos estarão dispostos a atacar cordões de isolamento para arrancar mais um centavo do preço de um filão de pão? No final, a menos que governos extraiam vantagens e tenham coragem de se impor sobre recalcitrantes detentores de direitos adquiridos em seus países, acordos não serão firmados. Não há substitutos mágicos para pura vontade política.

Na realidade, a Rodada Doha é uma vítima de apatia política coletiva, inspirada não no fracasso do sistema de comércio mundial, mas em seu extraordinário sucesso. A OMC pode ter reduzido poucas barreiras comerciais em seus 10 anos de existência, com a notável exceção de cortes de larga repercussão que a China concordou em implementar quando entrou para a organização. Mas o impacto acumulado de liberalização passada continua a produzir enormes benefícios. Eles foram reforçados por notáveis vigor e resistência da economia mundial. Apesar de repetidos choques, o protecionismo continua confinado às margens; o crescimento do comércio é, habitualmente, superior ao da produção mundial, e aberturas unilaterais de mercado - a mais eficaz variedade entre todas as medidas - prossegue em muitas regiões do mundo.

-------------------------------------------------------------------------------- Sistema de solução de disputas da OMC é seu grande sucesso, mas sua eficácia depende da disposição dos membros de cumprirem suas decisões --------------------------------------------------------------------------------

Dessa perspectiva, o fracasso de Doha parece apenas a uns poucos oportunidade perdida. Os custos de longo prazo, porém, podem ser mais graves. Um deles é acelerar a proliferação de acordos de comércio preferenciais, com a Ásia em seu centro. A maioria desses acordos contribuem, lamentavelmente, pouco para abrir mercados e em vez disso empilham barreiras regulamentadoras e custos. Uma região que viva do crescimento de exportações e prejudique a si própria dessa maneira assemelha-se a perus votando a favor do Natal.

Risco ainda maior é de que as regras na base do sistema multilateral comecem a desmoronar. Embora os membros da OMC defendessem que a rodada fosse completada, eles tinham interesse comum em se conter para evitar disputas. Com as conversações empacadas, há muito menos razões para usar luvas de pelica.

O sistema de resolução de disputas da OMC é seu único grande sucesso. Mas sua eficácia depende unicamente da disposição dos membros soberanos de cumprir voluntariamente as decisões. Por quanto tempo pode qualquer sistema judicial continuar a desempenhar suas funções sem o paralelo envolvimento político proporcionado por concomitante e continuada atividade legislativa? Talvez não leve muito tempo para descobrirmos.

Todos perderiam, no caso de um retrocesso para hostilidades comerciais olho por olho e em razão da incerteza econômica que isso criaria. Mas nenhuma região é mais vulnerável do que o Leste Asiático. Ela gera um terço das exportações mundiais de mercadorias - mais do que as dos EUA e da UE combinadas - ao passo que a inexistência, ali, de instituições regionais e regras comuns torna a região fortemente dependente da OMC para manter os mercados abertos.

Entretanto, desde o início da Rodada Doha, os maiores atores no Leste Asiático mantiveram-se passivos, deixando para outros a responsabilidade de chutar a bola para a frente. O colapso das conversações torna a indiferença e a complacência opções muito mais arriscadas, provavelmente mais arriscadas do que a maioria dos governos asiáticos já admitiu.

Os profundos fossos de desconfiança mútua que dividem o Leste Asiático, particularmente a China e o Japão, por muito tempo impedirão que a região tome quaisquer iniciativas concertadas na OMC ou em qualquer outro fórum multilateral. Num futuro previsível, somente os EUA poderão exercer a liderança necessária - caso venham a assumir tal iniciativa. Mas quando chegar a hora de começar a juntar os cacos da Rodada Doha, será do próprio interesse asiático ser o primeiro na fila do dispostos a dar uma mãozinha.