Título: Antes de abrir pode ser preciso fechar
Autor: Guimarães, Luiz Sérgio
Fonte: Valor Econômico, 03/08/2006, EU &, p. D6
Guido Mantega usou o instrumento errado para atingir o alvo certo. Com seu pacote cambial baixado na semana passada, o ministro da Fazenda queria, em última instância, atenuar a volatilidade da taxa de câmbio e estimular a redução dos juros. Exercícios econométricos presentes no livro "Câmbio e Controles de Capitais" mostram que Mantega jamais conseguiria alcançar seus objetivos por meio de medidas liberalizantes. A arma correta seria a criação de restrições à livre movimentação de capitais.
Há muita e boa teoria econômica na obra organizada pelos professores João Sicsú, da UFRJ, e Fernando Ferrari Filho, da UFRGS, mas aqui se enfatizam os "testes econométricos" justamente para descaracterizar o trabalho como um libelo de esquerda. A ideologia mostra-se articulada no sentido oposto. Para o professor José Luís Oreiro, da UFPR, as objeções à introdução de controles de capitais em países emergentes parecem basear-se "mais em preconceitos de natureza ideológica do que em argumentos fundamentados na teoria econômica".
Alguém falou em ideologia? Freqüentemente, as propostas em favor da criação de controles são estigmatizadas de esquerdistas, naquele tom pejorativo destinado a desqualificá-las. Um capítulo inteiro do livro discute o tema. E conclui que o rótulo de esquerdismo é um duplo equívoco. O primeiro é considerar de esquerda qualquer tipo de intervenção estatal na economia, quando o conceito é nitidamente de natureza política. O segundo resulta de desconhecimento histórico. Os maiores proponentes de controles não são intervencionistas clássicos. Dos quatro principais países - China, Chile, Índia e Malásia - que usaram controle de capitais na década de 1990, apenas a China pode ser considerada de "esquerda", e a orientação política do governo malaio é de direita autoritária.
Nem sempre a rejeição foi assim liminar. Antes da consolidação do fundamentalismo neoliberal - que supõe como auto-evidente a superioridade do livre mercado sobre qualquer tipo de intromissão, dispensando como supérfluas justificativas teóricas ou exemplificação empírica do seu êxito - o pensamento conservador admitia o uso de controles de capitais como um mal necessário, limitado no tempo, já que se trata de instrumento inferior e temporário, enquanto se construíam, com reformas, as condições de mercado para a total liberalização do trânsito de capitais. Isso foi antigamente.
Hoje, dada a supremacia do purismo radical mercadista, a liberalização é vista como indutora de desenvolvimento e bem-estar social. E se dispensa a apresentação de provas a respeito. O argumento, contraditório historicamente, é o de que a superioridade da liberalização cambial já integra a sabedoria convencional dos economistas. Seria verdade inquestionável, dogmática.
A história da transformação de economias precárias em nações plenamente desenvolvidas mostra o contrário: a abolição dos controles de capitais só é feita "depois" de conquistado o desenvolvimento. Foi a imposição de regulações e restrições ao capital externo, submetido a uma estratégia desenvolvimentista geral, que forjou as precondições do crescimento econômico.
O que fundamenta a negação do controle de capitais é a tese de que, quanto mais livres, mais eficientes se tornam os mercados. Já os que são contrários à liberalização acreditam que os mercados são imperfeitos por natureza, pois não há equanimidade na distribuição de informações. Esta é sempre assimétrica, uns tomam posse de dados e saem na frente dos demais, cuja reação é o comportamento de manada, danoso a toda a economia. A imperfeição resulta, sobretudo, do fato de que matéria-prima dos mercados é a incerteza fundamental que envolve o futuro. E como se está sob o império de irremediável incerteza, o atributo fundamental de qualquer ativo é seu prêmio de liquidez, sua capacidade de ser convertido em moeda a qualquer momento e ir para outro lugar.
Quando as autoridades econômicas garantem que os sólidos fundamentos internos blindaram a economia brasileira contra choques externos, estão dizendo que não precisam impor controles aos movimentos de capitais para impedir contágios. Não argumentam com essa clareza, mas é disso que se trata: os bons fundamentos são atropelados em momentos de crise se a economia não estiver envolta em uma couraça capaz de isolá-la. Uma política permanente de restrição à livre movimentação de capitais confere autonomia à política econômica. A taxa de juros, sobretudo, não se tornará refém das decisões dos grandes financistas interessados apenas em maximizar lucros.
Partidários das duas posições concordam que a existência de controles confere autonomia à política econômica. Só que, para o neoliberalismo, essa independência não seria desejável: sem a disciplina dos mercados, a tendência dos governos é utilizar seus poderes de forma irresponsável. Se o capital dispuser da liberdade de ir e vir, terá poder de veto a decisões populistas prejudiciais à economia - que de fato seriam, como preferem dizer os defensores de controles, decisões lesivas aos detentores de riqueza.
De qual capital externo se está falando? A distinção se faz de acordo com sua natureza, origem ou maturidade desejada. Investimentos diretos teriam qualidade superior aos empréstimos e às aplicações financeiras em ações, títulos e mercados de derivativos - cujo ganho reside na arbitragem entre taxas de juros - porque são influxo de poupança externa em setores produtivos. Mesmo essa qualidade já foi contestada, e por países em relação aos quais hoje não paira a menor suspeita de xenofobia. No auge de seu crescimento, o Japão preferia empréstimos a investimentos diretos, para não correr o risco de desnacionalização da economia.
Argumento comumente utilizado pelos que abominam a imposição de regras sobre o deslocamento do dinheiro é o de que, se flutuante, o câmbio auto-regula, via preço, o ímpeto de entrada ou saída, dispensando legislação a respeito. Ao contrário. Se a livre movimentação de capitais é incompatível com sistemas de câmbio fixo, também é verdade que um regime de taxa flutuante pode tornar-se insustentável quando os especuladores podem ir e vir a seu bel-prazer. Os autores argumentam que o câmbio flutuante está longe de ser um "substituto perfeito" para os controles. Não há como sustentar-se a afirmação de que a valorização ou a desvalorização da moeda nacional irá, em algum momento do interesse dos "players", auto-ajustar-se sem gerar até lá impactos negativos sobre a economia como um todo. Se a desvalorização for muito intensa e rápida, pode provocar desequilíbrios cumulativos, ao invés de autocorretivos. E não há estudo que comprove que a liberalização da conta de capitais promove mais crescimento econômico. As nações ricas de hoje fornecem fartos exemplos históricos de que o oposto funciona.