Título: A armadilha da regra
Autor: Prado, Antonio
Fonte: Valor Econômico, 03/08/2006, Opinião, p. A12

A discricionariedade da política monetária desde sempre foi objeto de polêmica na teoria econômica. Há os que responsabilizam as autoridades monetárias pelas grandes catástrofes econômicas do século XX, aqueles que as saúdam por seus grandes feitos e até os que as consideram mais uma fraude dos arautos do mercado auto-regulável.

Tanto poder assusta e fascina a todos, aos que querem um banco central que seja apenas uma inteligência artificial com o mínimo de tutela humana e até aos que acreditam que ele pode ser a centelha da transformação social. O fato é que parece haver um consenso crescente de que esta força deve ser constrangida ou por um mecanismo quase automático, garantido por uma regra transparente que possa dar o máximo de previsibilidade às decisões dos banqueiros centrais, ou por um mandato definido pelas instituições democráticas e por elas monitorado de perto. A regra ou o discernimento da arte.

Não há, evidentemente, modelo de gestão de banco central que seja puro, nem artistas que não sigam regras. Os teóricos da política de metas de inflação acabaram por reduzir quase todas as políticas monetárias atuais a modalidades de política de metas, a partir do tipo de variável-alvo, dos seus graus de transparência e credibilidade da autoridade monetária. O americano seria de metas implícitas, garantido pela alta credibilidade da autoridade monetária daquele país; o brasileiro um modelo pleno, com regras e metas explícitas. Considerando que nossa história monetária não é das mais brilhantes, um regime monetário de discricionariedade constrangida é um avanço institucional importante. Eleva a transparência dos atos dos gestores da política monetária a níveis pouco vistos anteriormente. Mas não necessariamente seu controle público real.

Há os que defendem que as políticas de metas de inflação são por construção muito rígidas. Mas isso parece depender mais da regra adotada. A definição do ritmo de desinflação e da meta de longo prazo é fundamental, como também as formas de absorver choques adversos, sejam elas através de margens de tolerância mais amplas ou de cláusulas de escape da meta original. Há outras alternativas de políticas monetárias, mas nas circunstâncias dos anos recentes, essa parece ser sustentável.

-------------------------------------------------------------------------------- Mesmo que a lenda diga que o planeta é plano, só é possível saber se há um precipício à frente dando alguns passos adiante --------------------------------------------------------------------------------

Mas há um problema. O que fazer quando a regra se torna uma armadilha? Não é uma questão nova: os paradigmas econômicos sempre se deparam com elas. O paradigma liberal se deparou com a armadilha da liquidez nos anos 30. Keynes demonstrou que a política monetária é totalmente ineficaz quando há uma convergência plena de expectativas em relação ao futuro da economia. Se todos acham que os preços dos ativos, reprodutivos ou não, irão desmoronar, de nada vale ampliar a disponibilidade de moeda, pois sua demanda torna-se quase infinita e as taxas de juros não se mexem. Os liberais não perceberam que a taça já havia se afastado bastante dos seus lábios.

A política de metas de inflação busca coordenar as expectativas dos formadores de preços. Como a transmissão da política monetária para os preços consome tempo, é necessário trabalhar com um indicador mais sensível, nesse caso, às expectativas de inflação em si. Para isso, o Banco Central do Brasil pesquisa semanalmente cerca de 100 instituições financeiras e consultorias especializadas e obtém dos cenaristas seus palpites fundamentados sobre a trajetória futura da inflação. A convergência das estimativas é sinal de que os preços futuros tornam-se menos incertos. Mas também pode ser sinal de que os modelos de previsão estão mais homogêneos e, em economia, a unanimidade pode ser paralisante. Os gestores de carreiras sugerem que é melhor errar com a manada e os cenaristas, no limite, adotam essa máxima.

No gráfico, é apresentada uma relação dos juros reais deflacionados pelo IPCA esperado nos próximos 12 meses e o coeficiente de expectativa de aceleração da inflação. Este último é simplesmente a divisão da inflação esperada nos próximos 12 meses pela dos últimos 12 meses. O período é curto e o modelo, simples, mas revela uma tendência perturbadora. A de que se os juros reais caírem abaixo de 10,3%, o mercado irá rever suas estimativas de inflação para cima.

Greenspan enfrentou algo parecido nos meados dos anos 90. As curvas de Phillips indicavam uma taxa "natural" de desemprego de 6%. Se o desemprego se aproximasse dessa taxa, o Fed deveria começar a elevar as taxas de juros para evitar uma aceleração da inflação. A comunidade acadêmica e os cenaristas do sistema financeiro tinham isso como um dogma. Mais uma armadilha da regra. Mas o Fed resolveu testar esse limite, considerando que havia outros fatores atuando sobre os preços. De início, o aumento da produtividade da economia americana e depois a deflação importada da Ásia. Se o Nairu fosse adotado, os chamados anos fabulosos da era Clinton não teriam ocorrido.

O Bacen deve testar esse limite dos juros reais de 10,3%. Há sinais plenos de que as autoridades monetárias têm reagido com lentidão excessiva ao ambiente. Vários índices de preços já apresentam deflação, as expectativas são de IPCA abaixo da meta para o final de 2006 e nos próximos 12 meses; o câmbio retornou aos valores nominais do início de 2002, já ocorreu uma redução do endividamento em dólares do setor público e do setor privado. Mesmo que a lenda diga que o planeta é plano, é só dando alguns passos a mais em direção a linha do horizonte que poderemos saber que não há precipício algum.

Antonio Prado é economista, professor do Departamento de Economia da PUC-SP (licenciado), foi Coordenador da Produção Técnica do Dieese nos anos 90 e é responsável pelo escritório do BNDES em Brasília. As opiniões aqui registradas são única e exclusivamente de responsabilidade do autor, não refletindo posicionamentos de nenhuma instituição