Título: 'Viva Leite' compõe gasto com Saúde em SP
Autor: Felício, César
Fonte: Valor Econômico, 03/08/2006, Especial, p. A14

Para cumprir a Emenda Constitucional 29, que obriga a destinação de 12% da receita dos Estados para a Saúde, o governo Geraldo Alckmin valeu-se de mecanismos discutíveis como a inclusão de programas de outras secretarias, entre eles o de distribuição de leite para crianças carentes de seis a meses a três anos, chamado "Viva Leite", da Secretaria de Agricultura e Abastecimento, que distribui o produto para crianças carentes. O procedimento foi aprovado pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE), mas está em desacordo com a recomendação do Conselho Nacional de Saúde, que só admite este tipo de despesa caso o programa seja gerenciado pela Saúde.

Em 2002, atendendo a exigências do TCE, o governo já havia excluído as despesas com atendimento médico e odontológico da Polícia Militar para a composição do limite. "O ministério da Saúde, o TCU e o TCE concordam com esta inclusão , o Conselho Nacional de Saúde, não. O leite para desnutrido é um programa de saúde. O leite fluido é enriquecido por vitaminas. Funciona quase como um remédio para desnutrição e desde 1945 a distribuição de leite existe fora da secretaria da Saúde", afirmou o secretário estadual da pasta, Luiz Barradas Barata.

A exigência constitucional é de 2000. Segundo o balanço do Estado, a despesa com saúde passou de 9,8% para 12,3% entre 2001 e 2004, indo em seguida para 12,1% em 2005. Naquele ano, as despesas com Saúde no governo Alckmin foram de 5,5 bilhões. Esses gastos no governo paulista são proporcionalmente superiores aos da União, que destina 7% de seus recursos ao setor. Ao contrário da União, os Estados são submetidos à vinculação constitucional.

O dinheiro efetivamente gasto com Saúde em São Paulo favorece programas que não expandem a máquina estatal. Alckmin manteve a política do antecessor, Mário Covas, de vincular investimentos para a construção de hospitais com o repasse da obra pronta para organizações sociais. Na Saúde, o custeio é mais importante que o investimento. Segundo cálculos da própria secretaria, gasta-se anualmente para manter um hospital o mesmo que se consumiu para construí-lo. O gasto com os hospitais das OS não é baixo, mas é regulado por contratos de gestão.

Expandir a rede exclusivamente usando organizações sociais foi uma aposta de Alckmin, mas a própria oposição ao ex-governador admite que pouco poderia ter sido feito de forma diferente. " O limite de gastos de pessoal da lei de responsabilidade fiscal cria constrangimentos intransponíveis à administração direta. Mesmo prefeituras petistas, como Santo André, adotaram experiências de organizações sociais", diz o consultor do PT estadual para Saúde, Eurípedes Balsanufo.

O modelo das Organizações Sociais foi concebido para terceirizar a gestão de um equipamento público. A administração é transferida para uma entidade civil sem fins lucrativos, que ganha agilidade de empresa privada para gerir o bem do Estado, tendo de cumprir metas estabelecidas em um contrato de gestão. O grande problema é o controle público, já que não existe licitação para a escolha da entidade.

Ao implantar o modelo em São Paulo, Covas criou dez hospitais geridos por Organizações Sociais. Alckmin quase dobrou esse número: ergueu mais seis hospitais administrados por elas e estadualizou outras três unidades que passavam por dificuldades financeiras e estruturais.

Os novos hospitais tocados pelas Organizações Sociais recebem tratamento especial na execução do Orçamento. "É completamente desproporcional o que se gasta com os 19 hospitais geridos por organizações sociais e os 45 hospitais administrados diretamente pelo Estado", afirmou a diretora do Sindicato dos Trabalhadores da Saúde (Sindsaude), Celia Regina Costa.

Segundo o relatório do Tribunal de Contas do Estado, as despesas dos hospitais "terceirizados" passaram de R$ 466 milhões para R$ 671 milhões nos últimos três anos. Em 2006, com a ampliação do número de organizações sociais, o repasse deverá ser de R$ 975 milhões, enquanto os hospitais sob administração direta até média complexidade devem consumir R$ 2,57 bilhões e os de alta complexidade, R$ 540 milhões.

"O gasto com os hospitais geridos no modelo de Organização Social é maior, mas eles conseguem vantagem na produção, na quantidade de internações", diz o secretário de Saúde do Estado, Luiz Roberto Barradas Barata. Com 16,4% dos leitos da rede estadual, os hospitais das organizações sociais são responsáveis por 29,3% das internações.

O aumento do número de hospitais, paradoxalmente, ocorreu ao mesmo tempo em que diminuiu a disponibilidade de leitos sob administração direta ou indireta do Estado. Entre 2003 e 2005, foram fechados 1,7 mil leitos estaduais. A rede paulista só não caiu fisicamente graças aos hospitais conveniados com o SUS, a rede privada e a municipal. "Esta redução aconteceu em razão do fechamento de leitos psiquiátricos, seguindo uma determinação nacional", diz Barradas Barata. Outro motivo para a diminuição de leitos, segundo a assessoria de imprensa da secretaria, foi a conversão em UTIs de diversos leitos dos hospitais universitários, aumentando o tempo de internação, também por orientação do Ministério da Saúde.

E mesmo a ampliação da rede de atendimento fora do âmbito do Estado não significou melhora da qualidade do serviço. Os baixos repasses de recursos do Ministério da Saúde sucatearam parte da rede. "Um parto normal custa em torno de US$ 300 para o hospital conveniado. O ministério repassa R$ 300, provocando o desequilíbrio", diz Barradas Barata.

A demanda por serviços continua estrangulada e representando o maior problema para a imagem tucana na Saúde. "A principal queixa sobre nossos serviços diz respeito à marcação de consulta e exames laboratoriais", diz o secretário. Fazer um exame de raio X pode demorar três meses em São Paulo. Marcar uma consulta com um cardiologista demora pelo menos 40 dias na zona leste da capital.

Como solução, o secretário sugere uma saída que flexibiliza um dos pressupostos fundamentais do Sistema Único de Saúde. "Os problemas não ocorrem por igual em toda a rede. Poderia haver uma central de marcação que organizaria o sistema, distribuindo os exames ao longo do Estado". Pelas normas do SUS, os hospitais devem obedecer ao critério da regionalização, atendendo apenas os moradores de uma determinada região.

Está sob administração direta do Estado, a produção e distribuição de remédios da Fundação do Remédio Popular (Furp), uma fábrica estatal em Guarulhos que distribuiu os medicamentos do programa "Dose Certa". Entre 2003 e 2005, o governo paulista distribuiu 2,8 bilhões de remédios, 500 milhões abaixo da meta a que tinha se comprometido nas leis orçamentárias.

Segundo a assessoria de imprensa da Secretaria da Saúde, o "Dose Certa" é uma vítima direta do grande tsunami asiático de 26 de dezembro de 2004. O programa dependeria da importação de insumos da Índia para a produção dos medicamentos, que foi interrompida em função da tragédia. (CF)