Título: A batalha de Fidel
Autor: Ribeiro, Renato Janine
Fonte: Valor Econômico, 04/08/2006, EU & Fim de Semana, p. 12

Qualquer proposta para uma Cuba democrática tem de partir de dois pontos. O primeiro é: respeitando as conquistas sociais da Revolução, que reduziram fortemente a desigualdade, implantar um regime baseado em eleições livres, abertas à oposição, em igualdade de chances entre os vários partidos que houver. O segundo é: nunca foi, não é, nem será justificável intervenção estrangeira (leia-se: americana) na vida política cubana, chame-se bloqueio, embargo ou invasão.

Estas duas condições são difíceis de atender ao mesmo tempo. A segunda deixa felizes os defensores de Fidel Castro e desagrada ao establishment americano, mas a primeira incomoda os simpatizantes da ditadura cubana. Contudo, apenas somando-as será possível uma Cuba democrática, isto é, com liberdade de expressão e de organização, sem interferência de forças externas.

A questão se torna premente com o recente afastamento de Fidel Castro por motivos de doença, mas já está no horizonte faz tempo. O governo dos EUA criou uma "Comissão pela ajuda a uma Cuba Livre" e, segundo relato de John Lee Anderson em "The New Yorker" de 31 de julho, montou um projeto para administrar a ilha, aparentemente após uma invasão militar que ocorreria em caso de convulsão social. Nem tudo está claro: os EUA ainda não decidiram, por exemplo, se todos os bens expropriados pela Revolução seriam devolvidos aos antigos proprietários, hoje na maior parte em Miami. A devolução desses bens não seria nada popular junto aos moradores de casas que pertenciam aos exilados, mas por isso parece que a matéria estaria ainda em debate.

Em outras palavras, de duas, uma: ou há uma democratização de dentro (como proporei neste artigo, sem muito otimismo) ou haverá algum tipo de intervenção, que pode até realizar eleições multipartidárias, mas restaurará a desigualdade social e criará problemas sérios de imediato. O que é melhor fazer?

AP Cubanos comemoram o afastamento de Castro na Flórida: possuem um PIB maior que o da ilha e os valores mais americanos que se possa imaginar Democratizar a vida política cubana exige começar separando o Partido (Comunista) do Estado. Hoje, estão umbilicalmente ligados. Romper esse vínculo não é simples. É difícil distinguir o que é do Estado, o que é do partido: prédios, veículos, mas também o trabalho voluntário (ou "voluntário", as opiniões se dividem) em prol do socialismo. Na verdade, como o partido se considera portador do interesse público, a seu ver se justifica que ele e o Estado estejam unidos. O Estado é a estrutura vazia, que a militância vivifica. Sem o empenho que o partido coloca nas ações das pessoas, restariam somente instituições.

Esta acaba sendo uma das grandes características do comunismo. Na modernidade, há duas vias para pensar a política. A primeira é a da instituição. Constroem-se estruturas, ou "instituições", que para funcionarem independem da bondade de quem ocupa os cargos. A segunda é a da ação. Aposta-se no empenho, no entusiasmo, no ânimo das pessoas para que a política não seja apenas um afazer fechado, frio, seco. Numa democracia habitual, o Estado reúne as instituições, mas, se não se renovar periodicamente pela via eleitoral, a política mata de enfado. Aliás, com isso a política deixa até de ser democrática, porque o povo se desinteressa dela - como a nossa classe média, que defende o voto facultativo.

Num regime socialista, a mobilização que nas democracias habituais se exerce basicamente pelo voto é considerada insuficiente. O povo precisa participar mais - e constantemente. O que chamamos de movimentos sociais, que são mais ou menos pulverizados, num país comunista se congrega numa única agremiação, que é o partido. O objetivo é exatamente esse: apostar na ação política, para que ela não seja traída pelo peso da instituição (isto é, da burocracia). A teoria é essa.

Na prática, o problema é que o Partido Comunista se tornou burocrático. A instituição ressecou a ação. Isso, em Cuba, é talvez menos grave que nos demais países comunistas. Cuba deve ter sido, nos últimos 30 anos, o regime em que o PC foi mais popular e ativo.

De qualquer forma, se democracia significar o aceite da divergência de opiniões, nenhum partido pode representar sozinho os interesses públicos, universais. Separar o Estado do partido quer dizer então: admitir outros partidos como tão legítimos quanto o Comunista. Não é apenas separar os bens, como num divórcio. É indagar como serão financiadas as atividades de outros partidos.

AP Havana, semana passada: um regime que persegue o pequeno capitalismo, em vez de fazê-lo aliado para o enfrentamento do grande capital numa Cuba pós-Castro O retorno dos exilados

Se - cedo ou tarde - será preciso organizar eleições livres em Cuba, um dia também será necessário admitir o retorno dos exilados. Na Flórida, há hoje uma comunidade de origem cubana cujo PIB provavelmente supera o da ilha. É como se fosse uma "Cuba Ocidental", assim como houve uma Alemanha Ocidental e uma Oriental. A Flórida cubana tem os valores mais americanos que se possa imaginar. A Cuba insular tem os valores mais antiamericanos que sejam possíveis. O problema adicional é que a Cuba do exílio tem muito dinheiro, e a Cuba de casa, não.

Até agora, Fidel tem aceito esse dinheiro e mesmo alguma visita dos exilados. Mas uma coisa é aceitar dinheiro, outra é admiti-lo sob forma de capital. Capital é dinheiro tornado poder. Se eu tiver US$ 1 milhão e gastá-lo, isso é dinheiro. Se tiver a mesma soma e montar uma empresa, é capital. Isso, Fidel não admite. Contudo, se for legítimo admitir o retorno dos exilados - ou de seus netos, ou de parte de uns e de outros -, eles virão com seu capital. E esse capital será mais do que necessário para desenvolver a economia cubana.

Ora, o problema é que, em vez de ver como admite isso no interior de uma economia de preocupação social, o governo cubano radicaliza. Depois de votar leis garantindo os capitais aplicados na ilha, fala agora em fechar os "paladares" - restaurantes clandestinos, mantidos por famílias, de boa qualidade e arrecadando em dólar, que devem seu nome ao restaurante Paladar, que a personagem de Regina Duarte montou na novela da Rede Globo, "Vale tudo" (1988). Amigos que foram a Cuba me contaram como era chegar a um paladar: quase uma operação clandestina, com senha e tudo. Um deles até comparou isso às operações dos militantes da esquerda sob a ditadura militar.

Mesmo que a política oficial a respeito oscile, é espantoso recear algo tão inocente quanto uma família trabalhar para ganhar mais dinheiro. E isso é preocupante, porque mostra a miopia de um regime que poderia deixar desenvolver um pequeno capitalismo, de ordem familiar ou de poucos empregados, e utilizá-lo como aliado no enfrentamento, este sim sério e inevitável, com o grande capital que poderá ir para a ilha.

John Lee Anderson mostra alguns dos parâmetros do que seria o governo provisório de Cuba pós-Castro - e o desenho geral lembra bastante o Iraque, o que deve apavorar qualquer um, mesmo quem não tenha simpatia alguma pelo comunismo cubano. A situação parece uma sinuca. Fidel se amesquinha na luta contra o microcapitalismo. Condoleeza Rice se assanha na designação de um futuro pró-cônsul dos EUA para a ilha (já estaria escolhido, segundo Anderson). O que fazer, então?

Evidentemente, o projeto Rice-Martinez (do nome de um senador americano de origem cubana) pode causar derramamento de sangue. Curiosamente, o que os EUA melhor teriam a oferecer seria uma espécie de Nafta com upgrade, que permitisse não só a livre circulação de capitais (como faz o Nafta com o México) como a de cidadãos. Mas isso seria uma anexação pura e simples, que ofenderia os brios não só dos cubanos como os sentimentos dos demais países ao sul do Rio Grande. Já o pior que poderiam fazer seria restituir as propriedades - casas, canaviais, engenhos e fábricas de charutos - aos antigos donos.

O cenário da ocupação americana comporta, porém, soluções intermediárias. Ninguém gostará de pagar aluguel alto a um exilado, quando hoje paga um valor simbólico ao Estado; mas, se ganhar US$ 300 por mês em vez de US$ 20 ou US$ 30 (o salário de um médico), um aluguel se torna palatável. Se a economia se tornar calamitosa, o que é possível, a entrada de capitais de Miami será bem-vinda, e relativamente poucos se importarão com o estatuto jurídico das empresas, se estatais ou privadas. Mas há que levar em conta um enorme orgulho que têm os cubanos da ilha, e o risco não menor de que a diáspora cubana, ao ingressar, pense que está triunfando.

Em suma, estamos diante de um impasse. Se a economia entrar em colapso, a diáspora pode voltar como os Bourbons em 1814, após um exílio de 25 anos: eles "não haviam esquecido, nem aprendido, nada". Essa é uma receita direta para conflito, ainda mais porque os exilados se alinham com a direita republicana. Por outro lado, o fato de Fidel estar apostando quase tudo numa "batalha de idéias" é um triste sinal de que, no plano dos fatos ou das perspectivas de vida, seu modelo tenha pouco a oferecer - e precise criar moinhos de vento, como os paladares.

Mas, resumindo, há meios de desatar este impasse.

- É preciso construir as bases para eleições livres. Isso quer dizer separar o Estado do partido, autorizar a livre expressão de idéias, soltar os presos políticos. Quer dizer também estabelecer um sistema de financiamento dos partidos - da direita até a esquerda - que não faça nem os primeiros terem o monopólio do capital privado, nem os últimos terem o monopólio do poder e verbas de Estado.

- É preciso reconhecer o direito de retorno aos exilados. Isso também pode ser negociado. Não precisam ser restituídos os bens confiscados, até porque a grande maioria refez sua vida e provavelmente tem mais riquezas hoje do que nunca antes. A maior parte provavelmente nem quererá voltar, mas é preciso que tenha o direito de regressar e de desempenhar um papel econômico e político no país.

- É preciso negociar o papel respectivo do poder de Estado (uma vez democratizado) e do capital (tão necessário para Cuba). Nada disso é fácil. Mas pior do que tudo será termos um Iraque no meio do Caribe.