Título: Kirchner terá poder total na Argentina sobre o orçamento
Autor: Rocha, Janes
Fonte: Valor Econômico, 04/08/2006, Internacional, p. A11

Com uma oposição enfraquecida e favorecido por um crescimento econômico em ritmo quase chinês, o presidente da Argentina, Néstor Kirchner, conseguiu com que o Congresso aprovasse um polêmico projeto de lei que lhe dá "superpoderes" para alocar verbas do Orçamento federal.

A votação na Câmara dos Deputados durou 11 horas, entrou pela fria madrugada de Buenos Aires, e terminou com 134 votos a favor e 90 contra o projeto de modificação do Artigo 37 da lei de Administração Financeira e Responsabilidade Fiscal.

O projeto dá ao Chefe de Gabinete do Executivo - o equivalente à Casa Civil brasileira, cargo ocupado na Argentina por Alberto Fernandez - poder para, por exemplo, tirar recursos do orçamento da segurança interna e aplicar em obras públicas ou esvaziar uma conta de subsídios e rechear os cofres das províncias. Isso sem precisar de autorização do Congresso, o que antes era condição obrigatória.

Calcula-se que o governo Kirchner ganhou poder discricionário e permanente sobre mais de 18 bilhões de pesos (US$ 6 bilhões) em gastos correntes e investimentos. Ficaram fora desse cheque em branco o nível de endividamento e o volume total do orçamento de despesas, cuja aprovação continua dependendo de aprovação do Legislativo.

O próprio Kirchner e outros presidentes já gozaram deste poder, mas de maneira excepcional e por um período determinado. Agora ele será permanente.

"A votação no Congresso tem um significado mais simbólico. Na prática, pouca coisa muda uma vez que o Executivo já exercia amplos poderes sobre o Orçamento", disse ao Valor o cientista político Sergio Berensztein, professor do Departamento de Ciência Política e Governo da Universidade Torcuato Di Tella - uma das mais respeitadas instituições de ensino da Argentina.

Berensztein acredita que Kirchner terá um respaldo ainda maior para manejar o poder que ganhou em cima de uma oposição que se enfraqueceu e se desarticulou depois da crise de 2001. "Para ele [Kirchner] não há aliados, o que importa são os mecanismos efetivos de poder. Quem não está dentro de sua coalizão não recebe recursos, ponto final", afirmou o cientista político.

Segundo ele, o "kirchnerismo" navega em um "vácuo" aberto com a desintegração da esquerda e do centro-esquerda argentinas, e sobre esse vazio fez um "take over" (termo do mercado financeiro que significa tomada de controle hostil) do discurso que antes pertencia à Frente País Solidário (Frepaso), movimento de esquerda que chegou ao poder com o governo Fernando de La Rúa, que sucedeu Carlos Menem em 1999 e se desintegrou após dois anos de gestão.

A oposição ainda tentou ganhar a votação em longos discursos e cenas insólitas, como a do deputado Mauricio Macri (do partido Propuesta Republicana, ou PRO), dono do clube de futebol Boca Juniors e herdeiro de uma das maiores corporações empresariais argentinas.

Macri levou um sapo de pelúcia para a tribuna do Congresso e usou-o para ilustrar a tese de que a aprovação do projeto significaria o mesmo que aquele experimento em que se coloca o sapo em um recipiente com água para esquentar e animal fica imóvel enquanto a água esquenta. "O sapo, como o povo, parece reagir ante revoluções ou ações bruscas, mas fica imóvel ante revoluções a fogo lento", afirmou em seu discurso.