Título: Profusão de acordos comerciais pode ser opção à rodada Doha
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Fonte: Valor Econômico, 04/08/2006, Internacional, p. A12

A Mongólia é um país sem acesso ao mar onde o rebanho supera em número as pessoas na proporção de pelo menos 12 para um. O país aderiu à Organização Mundial de Comércio (OMC) em 1997, interessado, entre outras coisas, em exportar mais cashmere e carne. Mas, segundo Damedin Tsogtbaatar, do Instituto de Estratégia Desenvolvimentista da Mongólia, o país investiu mais do que recebeu da OMC. Os mongóis "adotaram, ironicamente, um caminho quase budista de auto-aperfeiçoamento e bom comportamento em relação à OMC, sem considerar se outros países faziam o mesmo".

Ah, se os maiores membros da OMC pudessem dizer o mesmo... Tivessem eles cobrado mais de si mesmos do que de seus concorrentes, poderiam ter salvo a rodada Doha de negociações comerciais, suspensa indefinidamente em 24 de julho. Em vez disso, as grandes potências comerciais - EUA, União Européia (UE) e Japão - poderão agora focar suas energias na negociação de acordos bilaterais ou com blocos regionais. Já há centenas de acordos "preferenciais" desse tipo, todos minando o princípio da OMC de "não-discriminação", ao favorecer as exportações de alguns membros em detrimento de outros. A Mongólia é o único membro da OMC que não firmou nenhum desses acordos.

Numa rodada de comércio mundial, os grandes participantes brigam entre si e depois estendem suas concessões a outros membros da OMC, inclusive à Mongólia. Fora do sistema multilateral, porém, as maiores potências têm liberdade para escolher as economias menores uma a uma. Muitos temem que isso resulte num sistema "centro-periferia", no qual as economias pequenas (a periferia) são levadas a firmar acordos com as grandes (o centro), mas não entre si.

Isso é maravilhoso para países ricos centrais. Eles podem importar mercadorias de onde quiserem, enquanto seus exportadores reservam os mercados periféricos inteiramente para si próprios. Já para os periféricos a coisa não é tão agradável. Ao baixar as tarifas sobre importações de produtos de países ricos, eles se limitam a comprar do centro, em vez de adquiri-los, mais baratos, de produtores de outros países. Essas importações chegam sem incidência de tarifas, o que é bom para os consumidores periféricos, porém ruim para seus Tesouros. De fato, o Banco Mundial estima que um sistema de comércio centro-periferia poderá custar aos países em desenvolvimento mais de US$ 20 bilhões por ano.

Felizmente, talvez seja improvável que o futuro do comércio mundial se conforme a um padrão tão absolutamente radial. Em um novo estudo analítico elaborado para o Centro de Pesquisas de Política Econômica, uma rede de economistas, Richard Baldwin argumenta que o sistema de comércio está muito mais confuso, e sob alguns aspectos mais esperançoso. Os atuais blocos comerciais nos EUA, Europa e Ásia são "difusos" e "permeáveis", diz ele. Muitos dos periféricos têm acordos firmados uns com os outros, e os blocos estão parcialmente sobrepostos. O México, por exemplo, é membro do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) e também mantém acordo de livre comércio com a UE e com outros países.

Esse emaranhado de acordos entrelaçados e parcialmente sobrepostos levantam uma interessante questão conceitual. O que aconteceria se se permitisse que as forças do regionalismo e bilateralismo evoluíssem até seu desfecho lógico? Se cada um dos 149 membros da OMC firmassem um acordo de livre comércio com todos os outros, o mundo ficaria entrecruzado por 11.026 acordos bilaterais. Em que seria isso distinto de liberalização multilateral?

Um acordo bilateral ou regional, por definição, favorece as mercadorias de um país em detrimento de das de outros. Por isso, é muito importante de onde provém um produto importado. Mas as origens de uma mercadoria podem ser difíceis de identificar com precisão. Como membro do Nafta, o México pode exportar, isento de tarifas alfandegárias, casacos para os EUA. Mas o que pode ser rotulado de um casaco mexicano? E se o zíper vier de Taiwan, o forro da Índia, ou o tecido do Reino Unido?

As regras que determinam o país de origem de um produto são atordoantes. Chegam a ser cômicas. Segundo o Nafta, por exemplo, um casaco deixa de ser mexicano se o fabricante importar o fio ou o tecido, ou costurar as partes do casaco com linha importada. Anglófilos americanos, porém, recebem tratamento especial: artigos do vestuário mexicanos confeccionados com tweed Harris, que é tecido à mão num tear com largura inferior a 76 centímetros e importado do Reino Unido, entram sem pagar tarifas alfandegárias.

Essas complicadas regras de origem também são distintas de acordo para acordo. As confecções mexicanas precisam satisfazer um conjunto de normas para os EUA e outro para a UE. Para piorar, as regras desencadeiam efeitos em cascata através de todo o resto do sistema mundial de comércio: em virtude de os EUA aplicarem tarifas sobre casacos mexicanos confeccionados com tecido indiano, o México não importa tecido da Índia. É como se o México tivesse imposto uma tarifa sobre a Índia, e um acordo bilateral com esse país em nada mudaria essas condições.

Para a UE, essa confusão terminou por tornar-se insuportável. As empresas na UE, explica Baldwin, não podiam absolutamente importar produtos feitos por uma subsidiária húngara com componentes poloneses, apesar de a Hungria e a Polônia terem, ambas, acordos de livre comércio com a UE e entre si. A reação da UE foi o Pan-European Cumulation System, or PECS, que foi efetivado em 1997, e estendido à Turquia em 1999. Esse sistema transformou uma retícula de regras bilaterais num único guarda-chuva multilateral. Segundo os termos do novo esquema, um casaco 50% húngaro, 30% turco e 20% polonês é considerado 100% europeu.

Baldwin acredita que outros blocos comerciais - o Leste Asiático em especial -, deveriam estruturar seus próprios PECS. Talvez a OMC, uma organização subitamente com tempo sobrando, poderia ajudar nessa tarefa. "Ninguém defende que esse emaranhado de acordos comerciais seja a melhor maneira de organizar o comércio mundial", escreve ele. Mas também ninguém acha que eles irão desaparecer. Em novembro passado, por exemplo, o Acordo de Bancoc, assinado em 1975 como sendo o primeiro acordo comercial preferencial asiático entre países em desenvolvimento, renasceu com um novo nome, Acordo de Comércio Ásia-Pacífico, e uma nova ambição de impor alguns padrões comuns ao espaguete asiático de acordos comerciais. Até a Mongólia está interessada em aderir.