Título: O time que pode envelhecer e melhorar com o tempo
Autor: Lucki, Jorge
Fonte: Valor Econômico, 08/08/2006, EU & Investimentos, p. D6

Muita coisa mudou no cenário vinícola mundial nos últimos 30 anos e um dos grandes responsáveis por tanta transformação (positiva) foi o inesperado resultado do "Julgamento de Paris", degustação confrontando rótulos californianos e franceses realizada na capital francesa em 1976 e na qual tintos e brancos americanos deixaram para trás congêneres franceses de prestígio - tema aqui iniciado na semana passada. Temos hoje uma enorme oferta de vinhos de qualidade, quebrando de certa forma o monopólio e o padrão imposto na época pelos países do Velho Mundo.

Ainda que o resultado do "Julgamento de Paris" tenha tido participação na mudança de estilo dos vinhos europeus, em particular os Bordeaux que eram austeros e tânicos e se modernizaram, a bem da verdade os bordaleses estavam eles mesmos em processo de mudar algumas práticas até então vigentes no sentido de alcançar tintos e brancos mais equilibrados. O objetivo era colher uvas em melhor estado de maturação, técnicas e conceitos desenvolvidos pelo professor Emile Peynaud no início da década de 70. O confronto com os vinhos americanos acelerou a implantação dessas práticas.

O fato de os tintos franceses escolhidos para encarar os californianos na degustação de 1976 terem vindo em grande parte da safra de 1970, que sabidamente se caracterizava por taninos mais duros e evidentes, foi usado como atenuante para o placar desfavorável, já que os Bordeaux estariam muito jovens para serem provados naquele momento. Seria de se esperar uma inversão no resultado no futuro, mesmo porque também se questionava, então, a capacidade de envelhecimento dos vinhos americanos.

Nada melhor do que tirar a prova, e isso foi feito no último mês de maio, comemorando, bem a propósito, o trigésimo aniversário do evento original. Mas não foi apenas uma reedição pura e simples. O Julgamento de Paris II, inteligentemente, aproveitou para colocar em discussão muitas outras questões que apareceram nesse meio tempo. A primeira delas, aqui levantada no artigo da semana passada, é a existência de duas escolas na análise de um vinho e que opõe novamente europeus e americanos. Os primeiros desde sempre foram acostumados a priorizar a elegância e a harmonia do vinho, condições essenciais para que tintos e brancos desempenhem por inteiro sua função maior que é acompanhar uma refeição.

Esse não é o padrão Robert Parker e outros críticos americanos, que, dando ênfase a uma escala de pontuação de 100 pontos para avaliar um vinho, acabam valorizando aqueles intensos e robustos, os que, enfim, pedem mais atenção para si do que para o prato que deveriam escoltar. Essa abordagem arrastou consumidores e, por conseqüência, produtores que alteraram sua maneira de elaborar a bebida. Parkerizaram-se.

Não seguir esse modelo, particularmente nos Estados Unidos, tende a causar reações contrárias iradas. É o caso da Stag ? s Leap Wine Cellars, exatamente a vinícola que venceu o primeiro Julgamento de Paris, mas que por não arredar pé de um estilo mais clássico - o proprietário, Warren Winiarski, é intransigente nesse aspecto e não está nem aí para eventuais conseqüências comerciais negativas - tem sido bastante criticada por Parker. Em sua publicação, a Wine Advocate, de fevereiro do ano passado, Robert Parker lhe dá notas baixas. Comentando que o vinho tem "corpo médio e um final angular e desinteressante", o influente crítico americano, para finalizar, ainda escreve: "Não lembra os grandes vinhos da década de 70 e meados dos anos 80. Que vergonha!". Será que os europeus diriam o mesmo?

Esta e outras questões bem atuais foram tratadas no Julgamento de Paris II. Seu mentor e organizador, Steven Spurrier, jornalista inglês e idealizador do evento pioneiro, teve a iniciativa de montar dois júris de nove membros cada, um composto por profissionais europeus e outro por degustadores com perfil mais americano, reunidos respectivamente em Londres e na Califórnia. A série de provas, realizadas concomitantemente nas duas cidades constou, antes de mais nada, da reedição da de 1976, com os mesmos 10 tintos de antes e com as mesmas safras utilizadas naquela oportunidade. Depois, quatro seqüências separadas de seis vinhos de colheitas mais recentes, pela ordem, borgonhas brancos, chardonnays californianos, bordeaux tintos e cabernets californianos.

Embora na consolidação do resultado dos dois grupos de jurados seja incontestável que na degustação com os mesmos vinhos de Paris os tintos californianos chegaram outra vez à frente dos Bordeaux - prova que eles tinham sim potencial para envelhecer e os franceses não evoluíram tudo aquilo que se esperava -, os sinais de diferenças na maneira dos dois juris analisar começaram logo a aparecer. Apesar de estarem concordes com relação ao ganhador, o Ridge Monte Bello 1971, houve sérias discordâncias nas colocações seguintes. Enquanto os americanos votaram em californianos para os cinco primeiros lugares, seus colegas europeus encaixaram dois Bordeaux nessa linha de frente, o Mouton Rothschild 1970, em segundo, e o Montrose 1970 em quarto.

Afora ter bem posicionado estes dois Châteaux, o grupo reunido em Londres mostrou coerência na análise dos dois melhores tintos californianos: o preferido absoluto, o Ridge Monte Bello vem de um vinhedo localizado a cerca de 600 metros de altitude, na região montanhosa de Santa Cruz, de clima mais frio e diferente, portanto, da grande maioria dos provenientes da quente do Vale do Napa. Vale também o estilo que seu proprietário, Paul Draper impõe até hoje, da mesma forma que Winiarski faz com seu Stag ? s Leap, o terceiro na preferência dos europeus e segundo colocado na geral. Aliás, esse tão bem votado Stag ? s Leap, é o mesmo execrado por Robert Parker. Responde a pergunta colocada mais acima. Prova também que a questão é mesmo pessoal, afinal nem os outros jurados americanos penalizaram-no.

E não houve tanta discrepância na abordagem dos brancos - houve leves inversões de posição - elas voltaram a se acentuar nos tintos. É de se perguntar o que teria acontecido se os bordeaux e cabernets californianos tivesse sido colocados lado a lado na mesma série. Na seqüência de bordeaux, a despeito da convergência em torno do Margaux 2000, vitorioso por unanimidade, houve sensível divergência nas duas colocações seguintes. Montrose e Latour, ambos 2000, desagradaram o júri americano, provavelmente pelo estilo mais austero que os identifica, sendo preteridos em favor do dócil Rauzan-Ségla, um bom margaux, em todo caso.

Predileções ainda mais antagônicas marcaram a última seqüência, que juntava os seis cabernets californianos. Ao mesmo tempo em que em Londres o robusto Shafer Hillside Select 2001 era relegado a um penoso sexto e último lugar, do outro lado do Atlântico o mesmo vinho brilhava, empatando na liderança com o Ridge Monte Bello 2000. Bem a respeito, vale notar que o Ridge tem a grande virtude de agradar a todos. Outro do grupo, porém, o Stag ? s Leap, desta vez não satisfez os dois lados por igual, ficando em primeiro entre os europeus e apenas quarto para os outros jurados.

Independentemente das divergências de opinião entre os degustadores quanto aos vinhos em si, parece haver consenso que os estilos dos tintos, cada um do seu lado, mudou bastante nesses 30 anos que separam o primeiro Julgamento de Paris de sua reedição. Os bordeaux estão mais modernos e mais acessíveis (não em custo, muito pelo contrário), perdendo aquela austeridade que os caracterizava quando jovens e que impedia seu consumo no curto prazo. Em todo caso, segundo comentários generalizados que apareceram nas mais diversas publicações que noticiaram o evento, essa evolução não os fez perder elegância e longevidade.

Os californianos, por outro lado, no geral assumiram um padrão próprio distanciando-se dos bordeaux que lhes serviam como modelo. O próprio John Shafer, proprietário do robusto Shafer Hillside citado, declarou que eles até tentaram produzir vinhos para ir bem com comida, mas brigar contra as condições climáticas do Napa Valley era um desastre. No anos 90, acrescentou, chegaram a níveis de açúcar e álcool altos, aceitando o que o clima deles lhes oferecia. Essa parece ser um uma meia verdade. Alguns críticos americanos mais compenetrados e isentos dizem que os novos vinhos do país têm menos estrutura e são menos equilibrados que os do passado, mais próximos, todavia, ao paladar local. Questão de opção e saber a quem devem agradar.

Mas não vão envelhecer tão dignamente quanto os da geração do Julgamento de Paris de 1976. A propósito, perguntado sobre a capacidade dos vinhos californianos envelhecerem, Paul Pontallier, diretor técnico do Châteaux Margaux, elegantemente respondeu: a questão não é saber se um vinho pode envelhecer, mas se ele vai melhorar, ganhar alguma coisa com os anos. Senão é melhor consumi-lo logo. É uma das questões que s terceira edição do Julgamento de Paris poderá responder.

Os resultados completos podem ser conferidos no www.copia.org .

colaborador-jorge.lucki@valor.com.br