Título: STJ pode permitir cobrança de dívida de jogo no Brasil
Autor: Goulart, Josette
Fonte: Valor Econômico, 08/08/2006, Legislação & Tributos, p. E1

Os brasileiros que se endividavam nas mesas de cassinos fora do país e voltavam para o Brasil cientes de que aqui não teriam que pagar o prejuízo, protegidos pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), podem começar a se preocupar. A mudança da competência estabelecida pela reforma do Judiciário e que determinou que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) deverá julgar os casos de homologação de sentenças estrangeiras ou de cartas rogatórias - que servem para citar as partes que devem responder ações judiciais fora do país - foi decisiva. Enquanto os ministros do Supremo entendiam que as dívidas de jogo não poderiam ser cobradas no Brasil, já que trata-se de uma atividade ilícita no país, alguns ministros do STJ já manifestaram, em decisão recente, que se ela foi contraída onde sua prática é legal o jogador terá que pagar a conta.

Nenhum caso de exequatur, como é chamada a carta rogatória, foi analisado ainda pelo presidente do STJ dentro de sua nova competência, e muito menos uma homologação de sentença estrangeira sobre dívidas de jogo foi apreciada. Mas no ano passado, a quarta turma do tribunal determinou, em uma ação promovida aqui mesmo no Brasil pelo grupo Carnival Leisures, que o deputado distrital Wigberto Ferreira Tartuce pagasse uma dívida de US$ 370 mil. O caso de Tartuce pode ser um sinal da mudança de jurisprudência. Até então apenas o ministro Marco Aurélio de Mello, quando as causas ainda eram de competência do Supremo, tinha ensaiado uma mudança de postura, mas que não foi seguida pelos outros ministros da corte.

No ano passado, o Supremo fez sua última apreciação sobre casos de dívida de jogo em um pedido de homologação de sentença estrangeira que envolvia Miguel Nicolau Duailibe Neto, parente de políticos do Maranhão, e o cassino Trump Taj Mahal Associates, de Donald Trump. Procurados pelo Valor, os advogados das duas partes não retornaram as ligações. Segundo a decisão do Supremo, apesar de já em 2005 não ser mais da sua competência analisar o caso, o pedido de desistência da homologação justificou a última decisão do tribunal. As duas partes fizeram um acordo sobre uma dívida que chegava a US$ 500 mil e então o cassino desistiu da homologação. A sentença estrangeira tinha sido proferida pela Corte Superior do Estado de New Jersey, Condado de Atlantic, nos Estados Unidos.

Atlantic City também deixou um promotor do Ministério Público do Estado de São Paulo em maus lençóis. O advogado Paulo Casella conta que esse seu cliente teve um pedido de carta rogatória impetrado no Supremo para que fosse realizada uma cobrança judicial nos Estados Unidos, mas alega que a dívida não existia. O Supremo seguiu sua jurisprudência no sentido de que dívida de jogo não pode ser cobrada no Brasil, e portanto não autorizou que o réu fosse citado no Brasil - fator determinante para que um processo judicial seja aberto. O promotor alegava que tinha sido vítima de uma fraude. Na sua versão da história, pelos idos do ano 2000 ele e sua esposa foram abordados por um agente de um cassino em New Jersey para um show de Stevien Wonder. Dentro do pacote estava uma linha de crédito do cassino. O promotor alega que chegando lá não havia show, apenas um hotel para ser desfrutado e muitas mesas de jogo. Apesar de pouco ter gasto no cassino, recebeu a intimação para o pagamento de uma dívida de milhares de dólares. O caso foi encerrado pelo Supremo em favor dos jogadores, assim como em outras 25 ações, segundo pesquisa feita pelo advogado Flávio Rodovalho, que defende o deputado Tartuce.

No caso de Tartuce, no STJ ele não teve chances. Os ministros entenderam não só que a dívida de jogo contraída no exterior, onde sua prática era legal, pode ser exigida como também que, tendo o pagamento sido efetuado, incide a segunda parte do artigo 1.477 do Código Civil, que prevê que não se pode recuperar a quantia paga voluntariamente. Rodovalho conta que os grandes jogadores não compram fichas nos cassinos, mas sim dão garantias. Foi o que fez o deputado Tartuce, adepto das roletas, que entregou quatro cheques no total de US$ 370 mil em garantia para jogar por quatro dias no cassino do Carnival Leisure, nas Bahamas. A dívida foi contraída entre uma mesa e outra, para garantir um crupiê de sorte, mas a conta não teria sido acertada e a dívida cobrada apenas quatro anos depois, quando então o cassino tentou descontar os cheques e não havia mais fundos nas contas bancárias. O STJ, entretanto, entendeu que Tartuce deveria pagar o que devia. A dívida foi saldada em um acordo feito antes que o Supremo julgasse um recurso especial.

O embate jurídico a ser travado no STJ pelos advogados dos endividados será marcado pela tentativa de convencer os ministros de que esse tipo de ação ofende a ordem pública brasileira por se tratar de uma atividade ilícita, assim como tráfico de drogas ou de mulheres.