Título: Rival de Chávez quer bolivarianismo com toque brasileiro
Autor: Murakawa,Fabio
Fonte: Valor Econômico, 11/04/2012, Especial, p. A18

Eu sou bolivariano", diz Henrique Capriles, 39 anos, com todas as letras. A frase soa psicodélica para um jornalista brasileiro que veio a Caracas para conhecer o homem que quer colocar fim à era Hugo Chávez, presidente da Venezuela desde 1999, líder da chamada "Revolução Bolivariana". Mas Capriles logo explica: "Todos os venezuelanos somos bolivarianos. Simón Bolívar é o pai da nossa pátria". Para ele, o exemplo a ser seguido não é o "Socialismo do Século XXI", de Chávez, mas o que chama de "modelo brasileiro", com programas sociais do Estado e geração de empregos na iniciativa privada.

Atual governador do Estado de Miranda, o segundo mais populoso do país e que abrange parte de Caracas, Capriles foi escolhido em fevereiro como o candidato único da oposição para as eleições de 7 de outubro. Solteiro, formado em direito, Capriles será o presidente mais jovem da história da Venezuela se derrotar Chávez.

As pesquisas dão amplo favoritismo ao presidente. Ele tem de 5 a 25 pontos percentuais de vantagem em relação a Capriles, dependendo do instituto e de sua orientação. Um dos mais sérios, o Datanalisis, aponta 44% das intenções de voto para o presidente, contra 33% para o rival. Mas, segundo analistas, nunca a oposição teve tantas chances de vencer, já que pela primeira vez está unida.

Capriles pretende visitar o Brasil entre o final deste mês e o início de maio para "discutir temas econômicos e conhecer a pacificação das favelas no Rio". Não dá detalhes da agenda por temer que o governo "sabote" a visita, mas insinua um possível encontro com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Capriles recebeu o Valor na tarde de segunda-feira em seu comitê de campanha, em Caracas. Veja abaixo trechos da entrevista.

Valor: Muitos críticos classificam o presidente Chávez como um ditador, mas haverá eleições presidenciais em outubro. A Venezuela é uma democracia ou uma ditadura?

Henrique Capriles: Depende de como você quer analisar, do que você entende por democracia e qual valor você dá a alguns elementos que são característicos da democracia. Eu estou aqui, você está me fazendo essa pergunta, eu estou respondendo, e aqui nós temos liberdade para falar. Mas na Venezuela há um poder que dirige os demais. Isso não é próprio do sistema democrático. Nós estamos em pré-campanha, e o governo utiliza descaradamente todos os recursos do Estado para fazer propaganda do seu partido político. Isso não é democrático. Eu não tenho acesso à mídia oficial, que só veicula informação minha para me desqualificar, me desprestigiar, para inventar coisas. Já me chamaram de drogado, homossexual, qualquer coisa que você possa imaginar. É a propaganda que têm os meios públicos frente a um aspirante à Presidência, que também é governador de um dos Estados mais importantes do país.

Valor: A Venezuela atualmente está melhor ou pior do que quando Chávez assumiu?

Capriles: Eu reconheço que este governo deu protagonismo ao tema da luta contra a pobreza, da desigualdade, da terrível situação que vivem muitos venezuelanos. Mas hoje, em 2012, muitos dos indicadores são iguais aos de mais de dez anos atrás. A produção petroleira é menor do que há mais de 30 anos. Se aqui não houvesse petróleo, não teríamos o que comer, porque não estamos produzindo, importamos tudo. Os indicadores de saúde, educação, hoje são iguais aos de há mais de dez anos, em termos de atenção a pessoas, de número de estudantes que estão no primeiro grau. O país tem quase 20 mil mortos [pela violência] por ano. Chávez recebeu o país com 7.000, 8.000 mortos ao ano. O único país, em toda a América, com inflação de dois dígitos é a Venezuela, além do Haiti e da Argentina. Eu não defendo o passado, porque não sou do passado. Eu sou um futurista. O país viveu uma democracia doente, e Chávez foi uma consequência de um modelo que ruiu.

Valor: A doença do presidente pode ter uma influência muito grande no processo eleitoral?

Capriles: Eu não faço especulação sobre um tema em que não existe informação. Nunca se deu um parecer médico e uma informação oficial sobre a situação da saúde do chefe de Estado. Sempre foi a conta-gotas. E eu acredito que isso é intencional, para que haja especulação sobre esse tema. O que eu posso dizer é que quero que Chávez saia candidato e que lhe desejo uma longa vida, porque eu quero que Chávez veja como a Venezuela pode progredir. Eu quero que ele veja como desperdiçou uma oportunidade histórica. Este país poderia ser hoje a potência da América Latina. Porque estamos em uma bonança petroleira. A Venezuela poderia ter diversificado a sua economia, como fez o Brasil.

Valor: O senhor reverteria as nacionalizações feitas por Chávez?

Capriles: É preciso ver caso por caso. Há empresas que nas mãos do Estado podem ser eficientes.

Valor: Por exemplo?

Capriles: Eletricidade, água, telefonia. Há empresas que podem ser administradas eficientemente e são estratégicas para o país, porque estamos falando de serviços públicos. Mas há outras empresas que não têm nenhum sentido terem sido nacionalizadas, como empresas agrícolas, indústrias de cimento, hotéis.

Valor: O senhor acredita em uma transição tranquila, caso seja eleito? Não teme que o apoio das Forças Armadas a Chávez possa dificultar essa transição?

Capriles: Eu não tenho nenhuma dúvida de que vamos mudar a realidade política na Venezuela. E isso significará também uma mudança nessas mensagens que geram incerteza dentro de algumas instituições venezuelanas, entre elas as Forças Armadas. Algumas declarações de altos oficiais das Forças Armadas [ameaçando não entregar o poder à oposição] são para adular a Chávez, para querer ficar bem com ele. Mas eu tenho a crença de que nós temos Forças Armadas profundamente democráticas, institucionais e apegadas à vontade do povo venezuelano.

Valor: O senhor teme a ocorrência de fraudes nas eleições?

Capriles: Aqui, se eu não cuido de uma mesa de votação, me roubam os votos. Eu preciso ter gente em todas as mesas de votação do país, para que não me roubem os votos. Assim eu consegui ganhar as minhas eleições. Senão, não seria governador, teria deixado minha eleição na mesa de votação.

Valor: O senhor, se eleito, manteria o nome do país como República Bolivariana da Venezuela?

Capriles: Eu não sou um homem de mudar o nome das coisas. As coisas não mudam por mudar o seu nome. Eu sou bolivariano, além disso. Bolívar não é de Chávez nem é de um partido. Bolívar é de todos os venezuelanos. O Estado de Miranda, onde eu sou governador, é Estado Bolivariano de Miranda. Por que eu vou mudar esse nome? Eu sou bolivariano. Todos os venezuelanos são bolivarianos.

Valor: O que é ser bolivariano?

Capriles: É ser seguidor de Bolívar, do pensamento de Bolívar. Ele é um pai da pátria e, portanto, seu pensamento tem uma grande influência no país. Nós devemos a independência a Bolívar. Eu sou venezuelano, bolivariano. Isso é parte do que Chávez faz para mostrar que ele é patriota e os demais somos os que vendem a pátria. Isso é simplesmente um jogo de palavras. Chávez não é mais bolivariano do que eu. Na Venezuela, não é preciso mudar o nome do país, mas o governo.

Valor: Como o senhor vê a política de controle de preços de Chávez. O senhor a mudaria?

Capriles: Não se pode mudar essa política imediatamente. Porque, se você não tem produção no país, e se libera o controle, automaticamente os preços disparam, dispara a inflação. Esses são controles que precisam ser levantados gradualmente, de modo que possamos ter uma economia sadia, onde haja muita produção e muita competição. Assim, teremos controle de inflação, preços acessíveis à população, e esses controles, que no fim das contas são foco de muita corrupção, poderão ser eliminados.

Valor: É possível tornar a Venezuela menos dependente do petróleo? Que outros setores da economia podem crescer?

Capriles: Agricultura, turismo, ferro, ouro, alumínio, mineração, reserva de água, possibilidade de desenvolver a indústria, de ter um bom comércio. A Venezuela tem tudo. É possível estimular esses outros setores gerando confiança, esse é o papel do governo. Dar segurança jurídica para que venham os investimentos estrangeiros, os investimentos nacionais. Aí arranca a diversificação da economia. O problema é que hoje acabaram todas as atividades, e ficou somente o petróleo. Porque o governo não quer diversificar a economia. O governo quer um Estado gigantesco que se financie com o petróleo e, ao final, isso significa que há um controle em suas mãos. Todos dependemos do Estado.

Valor: O senhor é favorável a abrir a PDVSA ao capital privado?

Capriles: Não. A PDVSA deve ser 100% estatal. Você pode fazer alianças com o setor privado, sem que isso signifique que a empresa petroleira não seja do Estado. Isso é estratégico para um país como o nosso.

Valor: O senhor manteria a venda subsidiada de petróleo a Cuba e a outros países do Caribe?

Capriles: O que eu creio é que precisamos ter convênios transparentes, de conhecimento público. Não utilizar o petróleo para comprar lealdade política. O petróleo venezuelano tem que ser para o desenvolvimento do país, dos venezuelanos. Nós podemos fazer convênios com outros países que signifiquem benefício para a Venezuela, relações mais equilibradas. O que eu não estou de acordo é dar de presente o petróleo venezuelano, nem vou dar de presente. Porque a Venezuela tem muitíssimos problemas para resolver. Eu não estou de acordo que, com o petróleo venezuelano, se façam casas em outros países, dando de presente o nosso dinheiro. Eu não estou de acordo.

Valor: Como o senhor administraria os pedidos bilionários de indenizações feitos por empresas que tiveram seus ativos estatizados?

Capriles: É preciso ver os contratos caso a caso.

Valor: O senhor pretende reprivatizar algumas empresas?

Capriles: Não. A palavra "privatização" na Venezuela está, digamos, banalizada, condenada. Aqui, se você diz "privatização", o governo logo diz: "Ah, vai dar de presente para os gringos". Não falemos de "privatizações", porque a palavra não é "privatizar".

Valor: E qual é a palavra?

Capriles: A palavra é como faremos cada empresa nacionalizada produzir. Nós a faremos produzir com o Estado, com os trabalhadores, convidando a iniciativa privada? Mas, no caso do petróleo, a PDVSA tem que ser do Estado. Essa é a minha opinião.

Valor: Os preços da gasolina na Venezuela são subsidiados, estão muito abaixo do valor de mercado...

Capriles: [interrompendo] É a gasolina mais barata do mundo.

Valor: O senhor pretende reduzir esses subsídios?

Capriles: Chegando ao governo, não podemos nem vamos aumentar a gasolina. É preciso tomar várias decisões antes de abrir esse debate. Quando o venezuelano tiver mais dinheiro no bolso, porque a economia está produzindo, não somente vendendo petróleo, aí eu direi: "Abramos o debate". E que o venezuelano diga: "Estão nos dando esse petróleo de presente. Governo, aumente o preço da gasolina". Que seja quase um clamor da população. Não se pode aumentar agora o preço da gasolina, porque o venezuelano vai dizer: "Por que você vai transferir para mim a sua má gestão, a sua forma errada de levar a economia?".

Valor: Como o senhor vê a entrada da Venezuela como membro pleno no Mercosul [já aprovada por Brasil, Argentina e Uruguai, restando apenas ratificação do Congresso paraguaio]?

Capriles: A primeira coisa que eu faria é reintegrar a Venezuela à CAN, a Comunidade Andina de Nações, que é o eixo natural para a Venezuela. Colômbia, Peru, Equador. Eu acho que esse processo de discussão com o Mercosul tem muito mais força se feito com a CAN. Temos que ver o quanto é benéfico para a Venezuela entrar no Mercosul. Se você me perguntar: "É benéfico?". Eu diria: "Conversemos com o Mercosul a partir da CAN". Eu vejo muito mais a Venezuela negociando com o Mercosul dentro da CAN, não somente a Venezuela.

Valor: O senhor não vê a Venezuela como um membro pleno do Mercosul?

Capriles: Eu sou totalmente a favor da integração latino-americana. O Brasil é a sexta economia do planeta. Não posso comparar o Brasil em termos de competição com a Venezuela. Nós ficamos para trás. Eu acho que podemos ter muito mais força, em termos de negociação com o Mercosul, se nos incorporarmos à CAN.

Valor: O que aconteceria com a Alba [...] em um governo Capriles?

Capriles: Eu não quero ser líder do mundo. Eu quero ser líder da Venezuela. Chávez tem uma agenda política em todos os esforços de integração que é promover a luta do Sul contra o Norte.

Valor: Mas a Alba deixaria de existir em seu governo?

Capriles: Não tem por que deixar. Eu estou de acordo com todos os esforços de integração na América Latina, desde que não sejam excludentes. Agora, não concordo em criar instâncias para defender mudanças na Constituição, constituições que são feitas sob medida. Essa é a agenda de Chávez. Essa não é a minha agenda.

Valor: Como seria a relação da Venezuela com os Estados Unidos no seu governo?

Capriles: Como seria com qualquer outro país da região. De respeito, de igual para igual. Eu não sou imperialista, nem creio no imperialismo. Eu acho que nós devemos ter uma boa relação com os Estados Unidos, porque isso nos interessa em termos econômicos. A presidente Dilma está hoje [anteontem] conversando com o presidente Obama. O que vai dizer Chávez desse encontro? Ele vai desqualificá-la por reunir-se com o presidente dos EUA?

Valor: Com quem o senhor pretende se encontrar no Brasil?

Capriles: Há uma agenda que nós estamos preparando, mas ela ainda não está toda pronta. A minha ideia, além de tratar de temas econômicos, é ver a pacificação que houve nas favelas do Rio. Creio que é interessante o que se conseguiu em termos da redução da violência. Já foram feitos alguns contatos, mas eu tenho sido muito reservado, para que o governo da Venezuela não trate de sabotar a minha visita ao Brasil. Com esse governo que nós temos atualmente na Venezuela, isso pode acontecer. Por exemplo, se eu vou ter um encontro com Lula, é possível que Chávez aja para evitar que Lula me receba.

Valor: O senhor já conhece Lula? Pretende encontrá-lo?

Capriles: Eu não conheço o Lula, mas tenho pessoas conhecidas que o conhecem, do Brasil e da Venezuela. Mas nisso eu tenho sido muito reservado, porque senão me sabotam a visita. Eu quero que a visita seja exitosa, porque eu já disse que o modelo brasileiro é um modelo a ser copiado na Venezuela.

Valor: O que o senhor quer dizer com "modelo brasileiro"? Que pontos desse modelo precisam ser copiados na Venezuela?

Capriles: No Brasil e como na Venezuela, o governo tem um papel importante a cumprir no combate à desigualdade social, à pobreza. Eu, em Miranda, tenho o programa "Hambre Zero" [Fome Zero], e eu me inspirei no Bolsa Família. O Brasil entendeu muito bem o papel do governo, mas também entendeu muito bem o papel do setor privado. O Brasil tem um Estado muito poderoso em temas sociais e um setor privado forte, que gera os empregos que o Estado precisa para tirar as pessoas da pobreza. O sucesso que eu vejo no Brasil, à diferença da Venezuela, é que não é um modelo assistencialista. O Brasil foi muito além, atraiu investimentos estrangeiros, gerou empregos no setor privado. O caso venezuelano é o contrário, é o Estado tendo a cada dia mais controle, mais poder, mais empresas, mais empregos. O Brasil decolou, e a Venezuela está estagnada, com uma das inflações mais altas do mundo. Eu digo sempre aos brasileiros. Não é porque há uma boa relação entre Lula e Chávez, ou entre Dilma e Chávez, que a Venezuela está nas mesmas condições que o Brasil.

Valor: Chávez tem uma relação muito próxima com Lula e com setores do PT. O senhor acredita que pode ter uma boa relação com o governo brasileiro petista?

Capriles: Eu estou seguro de que nós vamos manter uma relação melhor com o Brasil do que a que hoje mantém o governo venezuelano com o governo brasileiro. Porque nosso modelo será similar. No Brasil, entendem o que significa a democracia. Minha visão de poder é de não reeleição indefinida [aprovada durante o governo Chávez], a importância das instituições. O Brasil acaba guardando para si [sobre os atos de Chávez] para evitar inconvenientes. E eu sei disso porque tem muita gente que eu conheço lá. O próprio Lula criticou [ao recusar a possibilidade de uma segunda reeleição] o tema de um presidente que queira estar para sempre no poder. Dentro das relações pragmáticas, porque há relações econômicas importantes, muitas vezes fecha-se o bico e há coisas que não se dizem. Mas eu sei o que se pensa no Brasil.