Título: O Brasil e a suspensão das negociações da OMC
Autor: Jakobsen, Kjeld e Barbosa, Alexandre Freitas
Fonte: Valor Econômico, 08/08/2006, Opinião, p. A14

Frustrou-se mais uma tentativa de acordo na OMC, o que não foi nenhuma surpresa dado o histórico da Rodada Doha. No entanto, é preciso matizar o que existe de "fracasso" e de "sucesso" neste desenlace.

Em primeiro lugar, o lançamento da própria rodada foi arrancado a fórceps em 2001, ainda sob o impacto do ataque às torres gêmeas e devido à pressão americana para se "promover o livre comércio como forma de combater a pobreza geradora do terrorismo". As relutâncias na época partiam principalmente dos países em desenvolvimento, devido ao fato de que várias das decisões tomadas em negociações anteriores não terem sido implementadas, especialmente no setor agrícola.

Enquanto isso, os países desenvolvidos procuravam impor uma agenda que incluía novos assuntos como investimentos, compras governamentais, acesso a mercados não-agrícolas (NAMA), entre outros. Ou seja, qualquer concessão na agricultura, por menor que fosse, exigiria grandes concessões em outras áreas. Mesmo depois do "susto" de Cancún, em 2003, quando houve a formação do G-20, junto com a posterior redução da agenda, não se conseguiu alterar este desequilíbrio inicial, tal como provam os resultados das várias reuniões informais do G-6, da ministerial de Hong-Kong e das discussões no Conselho Geral da OMC.

O que está acontecendo hoje não é muito diferente do ocorreu no comércio mundial desde o fim da Segunda Guerra Mundial, quando os fluxos mundiais de comércio estavam bem mais concentrados nos países desenvolvidos. Eles sempre definiram a velocidade, a intensidade, os bens e suas exceções para fins da liberalização comercial por intermédio da redução tarifária. Nunca adotaram qualquer medida antes que estivessem preparados. Por isto, desde a criação do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT) e até a Rodada Uruguai, o tema agrícola nunca fez parte da agenda e os produtos têxteis só foram incluídos recentemente.

Em 1994, os países desenvolvidos conseguiram o maior acordo de liberalização comercial da história, arrancando concessões muito significativas, como redução tarifária de bens industriais, propriedade intelectual e serviços em troca de regras sobre subsídios agrícolas - o que não impediu que estes inclusive se elevassem. Diante desta experiência tão bem sucedida para eles, porque fariam concessões agora? É neste sentido que a crise atual comporta um elemento de sucesso.

Mas onde estaria o fracasso? Ora, o enfraquecimento do multilateralismo tende a conferir uma ainda maior importância para as negociações comerciais bilaterais, embora elas já venham avançando independentemente das negociações na OMC. Esta possibilidade debilitaria ainda mais a capacidade dos países em desenvolvimento de obter concessões, principalmente em áreas como a agricultura.

Assim, preservar o espaço multilateral para definição de acordos internacionais na área da economia e do comércio parece fundamental. A questão que deve nos angustiar é a seguinte: em que medida a OMC tem condições de proporcionar este espaço, levando-se em consideração a sua recente dinâmica negociadora e, pior ainda, a herança que ela carrega de 60 anos de hegemonia inquestionável dos países desenvolvidos.

-------------------------------------------------------------------------------- Dos 20 anos de abertura econômica à brasileira, tivemos como resultado a especialização regressiva da indústria nacional --------------------------------------------------------------------------------

Quanto à posição do governo brasileiro, esta se mostrou correta ao buscar até o fim a abertura dos mercados agrícolas, além de lutar pela preservação das negociações multilaterais; embora chegasse em alguns momentos a ser temerária, especialmente quando acenava com a possibilidade de cortes nas tarifas consolidadas dos bens industriais de pelo menos 50% em média (de acordo com o coeficiente 30 da fórmula suíça), ainda mais arriscado num ambiente de valorização cambial.

Ressalte-se que para um grupo importante de produtos - concentrados em setores estratégicos tais como calçados, têxteis e vestuário, automotivo, eletroeletrônico e para alguns segmentos da indústria química - esta redução implicaria uma queda não desprezível das tarifas aplicadas. Ou seja, as tarifas seriam cortadas na prática - reduzindo inclusive as margens de preferência entre os países do Mercosul - e não na teoria, como acontece no caso das ofertas dos países desenvolvidos.

Devemos lembrar que os 20 anos de abertura econômica à brasileira, com redução tarifária e valorização cambial, realizada de forma indiscriminada, sem exigir reciprocidades ou levar em conta o interesse nacional, trouxeram como resultado uma especialização regressiva da indústria brasileira - cada vez mais concentrada nos setores de baixo e médio potencial tecnológico - e a eliminação de 2 milhões de empregos industriais, acarretando uma redução de 20% no total de postos de trabalho da indústria de transformação.

Um acordo no afogadilho levaria a uma maior pressão competitiva sobre o parque produtivo nacional num contexto de juros ainda elevados, repercutindo negativamente sobre nível de emprego e as condições de trabalho. Enquanto isto, a China assistiria de camarote a redução tarifária de países em desenvolvimento, especialmente aqueles que "brincam" de câmbio baixo.

Ora, nos últimos cinco anos, sem aumento da abertura, em função da desvalorização cambial e da recuperação do mercado interno, o Brasil gerou 1,5 milhões de empregos formais na indústria. Se quisermos continuar nesta toada, teremos que resistir à fúria liberalizante dos países desenvolvidos em bens industriais. Mais importante ainda, não podemos ceder mais do que já fizemos no passado naquilo que é essencial: a possibilidade de desenvolver políticas industriais, agrícolas e de financiamento ao nosso desenvolvimento. Portanto, a interrupção das negociações não significa nenhuma tragédia para o Brasil.

Como prova disso, cabe enfatizar que duplicamos as nossas exportações entre 1999 e 2004. Para isso, contribuíram vários fatores, dentre os quais a desvalorização cambial e a forte recuperação do comércio internacional pós-2002 motivada pelo crescimento econômico mundial.

Por outro lado, a crise da OMC tampouco merece ser comemorada. Além de manter o atual desequilíbrio de poder no plano internacional, abre um ponto de interrogação sobre a possibilidade de criação de um sistema multilateral de comércio que seja favorável à elaboração de estratégias de desenvolvimento provenientes da periferia.