Título: Este país se desenvolve mais do que parece
Autor: Veiga, José Eli da
Fonte: Valor Econômico, 08/08/2006, Opinião, p. A15

Diz-se que uma geração inteira nunca viu o Brasil se desenvolver, pois lá se vão 25 anos desde que a renda nacional por habitante parou de progredir. Esta é uma avaliação que desfruta de quase unanimidade entre analistas. E que até foi escolhida para abrir o manifesto "Por que Heloísa", recentemente lançado por uma dúzia de personalidades, entre as quais três dos melhores economistas inconformados: Carlos Lessa, Leda Paulani e Reinaldo Gonçalves. Mas é crucial que seja contestada, pois se apóia em ingenuidade sobre a relação que o desenvolvimento mantém com o crescimento econômico.

Não há dúvida de que o ano de 1980 foi um ponto de mutação no aumento da renda nacional por habitante. O PIB per capita, que havia mais do que triplicado nos 25 anos anteriores (+ 212%), subiu míseros 8,9% nos 25 posteriores. Mas está errado simploriamente deduzir daí que não houve desenvolvimento. Tudo depende de como os frutos desse raquítico crescimento econômico tenham sido utilizados pela sociedade, fenômeno que nada tem de linear como supõe a conjectura. A depender da estrutura institucional prevalente, ocorrem diversos graus de ampliação ou de encolhimento dos impactos potenciais do crescimento sobre o desenvolvimento.

Chocante ilustração desse fenômeno está na trajetória de elevação da expectativa de vida na Inglaterra no século passado. Não há característica mais elementar do processo de desenvolvimento do que a capacidade das pessoas sobreviverem em vez de sucumbirem à morte prematura. Ora, contrariamente ao que diriam os que supõem que o desenvolvimento seja diretamente proporcional ao crescimento, a longevidade dos ingleses aumentou bem mais em períodos de crescimento medíocre. A expectativa de vida aumentou 6,5 anos no período 1911-21 e 6,8 anos no período 1940-51, mais do que o dobro do que aumentou nas décadas de 1920 e de 1950. Ou seja, um dos melhores indicadores de desenvolvimento avançou mais em duas circunstâncias bem adversas, com racionamento alimentar, dificuldades higiênicas e morticínio. Bastam rápidas consultas aos já clássicos "Phases of capitalist development", de Angus Madison, e "Causes of death", de S. Preston et al., para perceber que as décadas de mais rápida expansão da expectativa de vida na Inglaterra do século XX foram esses dois períodos de crescimento muito lento do PIB per capita. E a explicação desse aparente paradoxo está no fato de que foram conjunturas de alta coesão social entre os britânicos. Períodos que exigiram intensa solidariedade no enfrentamento das dificuldades impostas pelas duas guerras mundiais.

-------------------------------------------------------------------------------- Pensar que em nossa época um forte crescimento econômico não seja fundamental seria estapafúrdio, principalmente por tratar de um país periférico --------------------------------------------------------------------------------

Também inexiste evidência histórica sobre algum elo pétreo entre a capacidade de sobreviver e a renda. Ao contrário, são fartos os casos inversos. Nos Estados Unidos, por exemplo, os afro-americanos têm menos chances de chegar a idades avançadas do que pessoas nascidas em economias imensamente mais pobres, como Costa Rica, Jamaica, Sri Lanka, o Estado indiano de Kerala, e a própria China. E certamente não há melhor referência para tais comparações do que o magnífico livro "Desenvolvimento como Liberdade", do prêmio Nobel Amartya Sen (Ed. Companhia das Letras, 1999).

O mais legítimo indicador do desenvolvimento, lançado há 16 anos pelo respectivo Programa das Nações Unidas (PNUD), não por acaso optou por uma combinação da renda com a expectativa de vida e o grau de acesso à educação, em vez do exclusivo PIB per capita. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é a média aritmética de indicadores dessas três dimensões do desenvolvimento por considerar que esse é o trio de condições sine qua non para a obtenção de todos os demais aspectos da qualidade de vida inerentes ao ideal desenvolvimentista. E a melhor maneira de se perceber que não é linear a relação entre crescimento econômico e desenvolvimento é dar um mínimo de atenção às suas discrepâncias.

Compare-se, por exemplo, os desempenhos brasileiro e mexicano nos últimos 25 anos, já que nesse período a taxa anual de aumento do PIB per capita do México foi apenas ligeiramente superior à do Brasil: 0,9% contra 0,8%. Se as outras duas dimensões básicas do desenvolvimento fossem linearmente determinadas pelo crescimento econômico, então a evolução do IDH mexicano deveria ter sido significativamente superior à do brasileiro. Não foi o que aconteceu. Por razões históricas sobejamente conhecidas, o México estava bem melhor que o Brasil no ponto de partida da comparação, o ano de 1980. Naquele momento o IDH mexicano já havia atingido 0,735, com uma vantagem de 53 pontos sobre o brasileiro, que era 0,682. Pior, essa diferença chegou a aumentar no início do período, atingindo 57 pontos em 1985. Mas tanto despencou depois que em 2003 estava em apenas 22 pontos, ano em que o IDH do México atingiu 0,812 e o do Brasil 0,792. Mesmo considerando que é mais difícil aumentar índices mais elevados, fica claro que nos últimos 18 anos foi superior no Brasil a tradução em desenvolvimento do crescimento econômico tartaruga comum aos dois países.

Claro, seria estapafúrdio pensar que em nossa época um forte crescimento econômico não seja fundamental, principalmente em países periféricos. Não é isso que se está afirmando, e sim que é imprópria a relação que se costuma fazer entre lentidão de crescimento e ausência de desenvolvimento. E a principal conclusão que se tira da comparação Brasil/México - ou com países de superior desempenho econômico, como China, Índia, Coréia ou Chile (ver Valor de 21/03/06) - é que muita coisa pode ser realizada em favor do desenvolvimento antes que o crescimento volte a ser robusto. Se a sociedade brasileira decidir concentrar energias na educação científica voltada à inovação, por exemplo, tirará muito mais proveito de cada ponto porcentual de crescimento do que era capaz de tirar antes de 1980, quando seu desempenho econômico chegou a ser espetacular. Quem diz o contrário, ingenuamente ajuda a fortalecer poderoso álibi mental para a conservação da matriz institucional herdada de sociedade oligárquica e escravocrata.