Título: Expansão do crédito exigirá dos bancos capital e depósitos
Autor: Maria Christina Carvalho
Fonte: Valor Econômico, 23/12/2004, Finanças e Mercados, p. C8

O presidente do Banco Itaú, Roberto Setubal, está bastante otimista. "Desde que assumi um cargo de direção no banco, em 1986, é a primeira vez que o Brasil tem condições de ter um desenvolvimento sustentável. Há mais de dez anos não se via um crescimento superior a 5%", disse ao Valor, segunda-feira, ainda sob o impacto da vitória do Santos no Campeonato Brasileiro. Santista roxo, Setubal fez questão de viajar para assistir à final do campeonato e de participar da reunião da manhã do banco vestindo a camisa do time coberta de autógrafos dos campeões. Para o banqueiro, nada pode dar errado nos próximos dois a três anos, desde que o governo mantenha a política econômica atual. A apreciação cambial não é um problema. "O Brasil não precisa ter um superávit comercial de US$ 30 bilhões todo ano", disse, "desde que continue acumulando reservas". Mas acrescentou que é preciso perseverar na agenda de reformas. "Os mancheteiros terão que se acostumar a ter notícias boas e não notícias catastróficas", afirmou. Para o setor financeiro, o cenário é favorável abrindo espaço para o crescimento do crédito. Os números do Itaú deste ano já refletem a tendência: a carteira de crédito cresceu 19,6% na comparação entre setembro de 2003 e setembro passado, para R$ 51,1 bilhões, sendo que a carteira para pessoa física aumentou 22,7% e para pequenas empresas, 44,5%. Essa nova realidade, cria outros desafios como ampliar os depósitos e o capital. Os juros vão cair, prevê, mas o aumento do volume de negócios vai compensar. Nesse cenário, vê os bancos estrangeiros ocupando uma posição mais relevante nos próximos anos pois eles estão mais acostumados a ambiente de estabilidade e crédito em expansão. Mas não espera mais compras. A grande onda de consolidação já passou, disse. "Agora serão miniconsolidações." A seguir, os principais pontos da entrevista: Valor: Como foi o ano de 2004? Roberto Setubal: A economia foi muito melhor do que se poderia supor. Não se via há mais de dez anos um crescimento superior a 5%. E o aspecto mais bonito é que o crescimento não será interrompido no ano que vem, quando vamos crescer 3 a 4%, pelo menos, o que é número forte; nem em 2006. E a primeira vez que o Brasil tem condições de ter um desenvolvimento sustentado, desde que ocupo posições mais importantes no banco. E isso já faz 20 anos porque passei a ser diretor em 1986, no Plano Cruzado. Todos os números estão mais ou menos em ordem. O crescimento está bom. As contas estão no lugar. O crédito está expandindo. O setor externo está com balanços positivos, o que reduz nossa maior vulnerabilidade nesses 20 anos; e a inflação está sob controle. Enfim, é um cenário muito positivo. Valor: Como se comporta o banco nesse cenário? Setubal: Foi um ano muito bom e acredito que os anos que vêm pela frente serão ainda melhores, com uma demanda de crédito muito consistente. É muito prazeroso ver a expansão do crédito financiando o crescimento. Boa parte do crescimento deste ano foi financiada pelos bancos, quer seja pelo crédito pessoal ou financiamento de automóveis. Vejo isso continuando no ano que vem. Há demanda por crédito para investimentos. Não acredito que em algum sobressalto maior. A gente pode crescer um pouco mais ou menos ao redor de 5%. Mas, não vai fugir muito disso. Se o cenário externo for mais difícil, vamos crescer 3%; se for mais favorável, 4% - o que não via há muito tempo. Valor: Quais negócios estão mais animados? Setubal: O que está em grande expansão no banco são as áreas de pequena e média empresa e de pessoa física, que dependem muito do crédito para crescer. A grande empresa tem outras fontes de recursos como mercado de capitais e financiamento externo. Portanto, quando a economia começa a crescer, essas áreas demandam muito crédito. É o que estamos vendo agora: demanda de crédito para capital de giro, compra de máquinas ou veículos pesados. Do lado da pessoa física, o aumento e perspectiva de manutenção do emprego encorajam as pessoas a assumirem um pouco mais de compromissos pela segurança que têm relação ao futuro. Outro negócio que cresceu neste ano foi o crédito consignado, e isso deve continuar no próximo ano. O sistema financeiro está muito disposto e preparado para financiar o crescimento no Brasil. Só precisamos ter as condições adequadas. Valor: Quais são as condições? Setubal: O crescimento sustentado. Evidentemente temos ainda problemas a serem resolvidos. Os juros e a carga fiscal são elevados. Tudo isso trava um pouco o crescimento. Mas, mesmo com todos esses problemas, a economia está crescendo bastante bem e com a perspectiva de continuar com crescimento bom. Valor: Quanto o crédito deve crescer no próximo ano? Setubal: Os setores de varejo devem crescer cerca de 30%. É um número factível, até inferior ao deste ano, quando a expansão do crédito deve chegar a 30% a 35% até o final do ano.

A grande onda de consolidação do sistema financeiro já passou. Agora veremos mais as pequenas consolidações "

Valor: Será homogêneo? Setubal: O Itaú, sempre teve um crescimento mais voltado para pessoa física por causa das aquisições feitas, com os bancos estaduais ou a Credicard; ou no atacado, por causa da compra do BBA. Na área das micro e pequenas empresas, a expansão é muito grande porque estamos abaixo do potencial. Estamos crescendo mais do que mercado e isso deve continuar assim porque nossa posição ainda é pequena. Valor: Das iniciativas recentes do Itaú na área da pessoa física, qual deve ter expansão mais acentuada? Setubal: A Credicard é uma empresa madura, líder de mercado em um segmento que está em grande expansão e deve continuar assim. Vai crescer acompanhando o desempenho do mercado. Tanto a financeira Taií quanto o acordo com o Pão de Açúcar deverão propiciar muitos negócios mas, ainda representam relativamente pouco para o grupo. Vão se tornar relevantes dentro de três a quatro anos. Temos um longo caminho a percorrer dos dois novos negócios, mas estamos satisfeitos com o andamento. A expansão do crédito para pessoa física ainda está baseada nas áreas antigas, como o financiamento de automóveis. Valor: As últimas operações realizadas, a compra da carteira de automóveis do Intercap e a cessão de parte da carteira do BMG, foram negócios de oportunidade ou fazem parte da estratégia? Setubal: O acordo com o BMG foi uma oportunidade e a intervenção no Banco Santos teve um efeito catalisador. Mas, se não acontecesse neste ano, ocorreria no próximo. A expansão nessa área está muito forte, superando a capacidade de funding dos bancos especializados. Uma das alternativa de é a cessão de crédito. Foi muito interessante ver como o sistema financeiro privado tem agilidade para encontrar soluções. O caso do Intercap é diferente. A gente já vinha negociando há muito tempo. Valor: Qual lição a intervenção no Banco Santos traz ao mercado? Setubal: Eu não esperava que o mercado fosse passar pela dificuldade que passou. A crise não atingiu o público em geral, como as ocorridas no passado. Os bancos que estão sendo criados não têm uma base tradicional de depósitos; e captam recursos no interbancário, de fundos institucionais e seguradoras, que são investidores mais ariscos. Quando se depende muito deles, o banco fica mais vulnerável. O Banco Central agiu muito bem ampliando a liquidez com a redução do compulsório; e o mercado soube encontrar soluções com rapidez. Acho que, no futuro, o mercado vai recorrer mais aos acordos operacionais de cessão de crédito e ao lançamento de fundos de recebíveis de modo a diversificar a captação, reduzindo a dependência dos CDB. Valor: E o novo papel do Fundo Garantidor de Crédito (FGC) de comprar carteiras de bancos? Setubal: Vamos ver como isso vai funcionar na prática. O FGC não está preparado para isso hoje porque tem uma estrutura mínima. A médio e longo prazo, pode ser uma alternativa de uso de parte dos recursos que possui. Para isso, será necessário ter uma estrutura grande para analisar crédito. Mas a idéia de usar até 20% desses recursos para comprar créditos é válida, mas tem limitações muito grandes. O fundo terá que ser bastante rigoroso ao adquirir um crédito porque tem que zelar pela integridade dos recursos. Sempre será uma solução burocratizada. Valor: Quais são os desafios do setor financeiro para os próximos anos? Setubal: Nos últimos anos, o grande desafio foi administrar os riscos de balanço corretamente - as flutuações da moeda, da taxa de juros. Daqui para frente, essas preocupações vão diminuir, cedendo lugar a questões ligadas à expansão do banco como funding. A liquidez que havia nos balanços dos bancos está diminuindo rapidamente. Até agora, os bancos estão emprestando mais trocando títulos por crédito. Daqui para a frente, a preocupação maior é ampliar a base de depósitos para dar mais crédito. Se tivermos mesmo uma expansão continuada do crédito, um dois anos, crescendo na faixa de 30% ou mais, um novo desafio será a base de capital. Valor: E o Itaú nesse cenário? Setubal: O Itaú está bastante bem. Desde 1982 não faz chamada de capital, tem folga no índice de Basiléia e uma geração interna de resultados muito forte. O Itaú está bem preparado para esse ambiente de expansão. Além disso, tem usado pouco o mercado institucional para levantar recursos e tem aí bom espaço para ampliar os depósitos. Valor: E os juros vão cair?

Os bancos estrangeiros assumirão papel mais relevante nos próximos anos; e o crédito em consignação vai disparar"

Setubal: Nesse cenário, veremos uma redução de spread bem significativa, se a gente pegar dois a três anos de crescimento. O spread cai pela combinação do aumento de volume, redução da inadimplência e aumento da competição. A lei de falências agora aprovada vai ajudar a reduzir os spreads. A lei anterior não era tão ruim assim, mas nem sempre era cumprida pelo Judiciário. Isso criou usos e costumes e foi necessário mudar a lei. Agora precisamos ver, na prática, como isso vai acontecer. Valor: O Itaú é um dos bancos de maior rentabilidade do mercado. Qual o segredo? Setubal: Não há segredo. É uma combinação de coisas plantadas há muitos anos e não fruto de uma conjuntura favorável; o resultado de muito trabalho, consistência e uma dose de sorte. Adotamos a estratégia correta em determinados momentos. Valor: E a concorrência dos bancos estrangeiros? Setubal: Sempre disse que os bancos brasileiros eram bastante competitivos e teriam total condição de concorrer com os que estavam chegando. Acho, no entanto, que o novo ambiente econômico no Brasil é mais favorável para os estrangeiros trabalharem porque a estabilidade é mais usual no resto do mundo. O ambiente de alta volatilidade que prevaleceu no Brasil no passado era mais difícil de entender para os bancos estrangeiros do que os bancos domésticos. Além disso, capital não é problema, sempre terão disponibilidade. Vejo os bancos estrangeiros ocuparem uma posição mais relevante nos próximos anos. Valor: A consolidação do sistema financeiro acabou? Setubal: A grande onda de consolidação já passou. Vamos assistir a continuidade de movimentação em nichos. Serão miniconsolidações. Quando a economia cresce, é mais fácil para todos terem retornos favoráveis. Por outro lado, as coisas acontecem mais rápido quando o mercado cresce. Em um mercado mais estável não vê muitas mudanças de ranking. Valor: Os bancos estrangeiros continuam interessados em comprar no Brasil? Setubal: Nos últimos anos, os bancos cresceram muito por aquisição. Daqui para a frente vai ser diferente. Vejo o mercado crescendo muito nos próximos anos, mas, orgânicamente. E teremos ainda que administrar funding e capital. As estratégias estarão mais ligadas ao posicionamento frente às oportunidades do que realmente na estratégia de aquisições. Valor: O que pode dar errado? Setubal: Não vejo nada dando errado. Pode dar mais ou menos certo em um horizonte de dois a três anos. Vamos assistir um crescimento contínuo da economia por dois a três anos, está praticamente encomendando, assumindo que o governo mantenha a política atual de superávits elevados, política de juros voltada para o combate à inflação e câmbio flutuante. A manutenção desses elementos certamente levará o Brasil a uma expansão econômica bastante sustentada. Não vejo a questão cambial como um problema, desde que se acumule reservas. O Brasil não precisa ter um superávit de US$ 30 bilhões todo ano. Os US$ 30 bilhões foram importantes para mostrar que o Brasil tem agilidade e criar um clima de confiança. Tanto é que a relação dívida externa e exportações melhorou muito. Valor: Não estaria na hora de o Banco Central reduzir a Selic? Setubal: Discute-se muito a questão da taxa de juros. Mas, o fato é que o BC tem acertado muito mais do que os críticos poderiam imaginar tanto no câmbio quanto nos juros. Ninguém poderia supor que, com esse nível de juro, a economia poderia crescer 5% ao ano. E esse nível de juro tem se mostrado necessário para manter a inflação baixa. A combinação de inflação baixa com crescimento é fantástica, apesar do juro ser alto. Mas se a economia está crescendo e o crédito expandindo não deveria ter tanta preocupação assim com a taxa de juros. Mudar agora acarretaria riscos muito grandes. Valor: É um céu de brigadeiro? Setubal: É pelo menos um cenário que há muito tempo a gente não via. Há uma agenda de reformas a ser feita ainda, previdência, independência do Banco Central. Tudo isso são lições de casa que temos que fazer. A manutenção de uma política de reformas vai levar o Brasil a ter condições de ampliar esse crescimento para um novo patamar. É só perseverar. As pessoas costumam lembrar com saudades da época em que o Brasil crescia 7% ao ano. Como a população aumentava 3% ao ano, a renda per capita crescia 4% ao ano. Hoje, com o crescimento da economia entre 4% a 5% e o da população de 1%, já produz o mesmo tipo de impacto de geração de riqueza daquela época. São números que, se mantidos ao longo de muitos anos, causam uma grande transformação no Brasil. Durante anos no banco, a gente passou anos com um pé atrás, agora nos sentimos encorajados a dar limite de crédito. Os mancheteiros terão que se acostumar a ter notícias boas e não notícias catastróficas.