Título: Pela indústria naval eficiente
Autor: Carlini,Nelson L.
Fonte: Valor Econômico, 12/04/2012, Opinião, p. A14

Quando se alcança sucesso relativo em qualquer programa de ação, deve-se ter cuidado para que os primeiros avanços não encubram os vícios de origem. O risco é comprometer novos resultados. O alerta vale para a indústria naval brasileira. Embora sua retomada seja um fato incontestável, que revelou visão estratégica por parte do governo, há sérios equívocos que precisam ser corrigidos, sob o risco de voltarmos a viver uma débâcle, a exemplo da ocorrida nos anos 1980.

Os incentivos fiscais e estímulos concedidos visando a dar impulso ao setor, como a desoneração fiscal representada pelo Decreto 6.704/08 e a Lei 11.774/08, bem como a criação de um fundo garantidor da indústria naval, não vieram acompanhados das necessárias exigências, contrapartidas e obrigações capazes de garantir o desenvolvimento do setor de forma sustentável no longo prazo. Critérios indispensáveis, como eficiência e produtividade, ficaram à margem do processo. A exigência de contrapartida de conteúdo nacional, calculada em valor, é mascarada pelo altíssimo custo dos componentes de origem interna.

Brasil não está criando um parque industrial avançado, mas apenas copiando projetos, com preços muito elevados

O resultado dessas lacunas é um protecionismo anacrônico que, passada a fase exuberante das encomendas da Petrobras, nos levará novamente ao fundo do poço. Note-se que essa nova indústria está imune a eventual concorrência de similares estrangeiros, protegida por uma sobretaxa de 54% imposta aos importados. Como todos sabem as encomendas aos estaleiros nacionais têm sofrido reiterados atrasos, mas quem quiser importar, para fugir da incerteza, terá que arcar com a diferença.

O exemplo do setor aeronáutico, em que a fabricante nacional tem um conteúdo muito menor que os alardeados 60% da construção naval, é sempre citado como exemplo negativo de política industrial. Todavia, muito pelo contrário, nossa fabricante de aviões sustenta sua produção com a exportação, cria modelos aceitos internacionalmente e tem engenharia de criação, projeto e detalhamento de construção próprios. Produz, como resultado disso, aviões em série de reconhecida qualidade, tornando-se das fabricantes mais eficientes do mundo em seu nicho de mercado.

A sua carteira de encomendas não está concentrada em apenas um grande demandante. E nada impede que as empresas de transporte aéreo brasileiras adquiram aeronaves onde obtenham melhores condições. Ou seja, o transporte aéreo doméstico não sofre problemas de capacidade derivados da exigência de aquisição doméstica de unidades. Isso é liberdade de mercado, com ênfase na eficiência. Certamente nossa indústria aeronáutica sobreviverá às vicissitudes da conjuntura internacional.

Enquanto isso, na nossa indústria naval, em função das restrições às importações, os preços das embarcações nacionais estão em média 80% acima das produzidas na Coreia do Sul e no Japão, e mais acima ainda daqueles praticados por estaleiros chineses e vietnamitas. É um ágio demasiadamente alto - e absolutamente injustificável - a ser pago pela retomada do setor. Até porque a indústria pode ser estimulada sem esse artifício nocivo à economia. O mais grave é que esses valores estratosféricos não estão sendo usados para criar pesquisa e desenvolvimento, ou para gerar conhecimento ou inovação. Não estamos criando um parque industrial avançado, mas apenas copiando projetos, com preços elevados. Os estaleiros nacionais tornam-se meros montadores, sem domínio sobre os processos.

Não é por outra razão que esta nova indústria naval só vende embarcações no Brasil, não tem sequer um contrato no exterior, e 90% de sua produção são destinados ao setor de óleo e gás - sondas, petroleiros e tanqueiros, navios de apoio a plataformas e plataformas de petróleo. Na verdade, tendo em vista os preços pagos internamente por esses contratos, que interesse haveria, por parte dos estaleiros, em buscar novos mercados, embora isso pudesse ser vantajoso para o país?

Os financiamentos do setor naval, por meio do Fundo da Marinha Mercante, incorporado ao Orçamento da União e administrado por um Conselho que concede prioridades segundo critérios discutíveis, afastaram-se da concepção original do programa. O tão necessário reaparelhamento de nossa marinha mercante ficou comprometido. Como o interesse está todo voltado para o setor de óleo e gás, outros segmentos estratégicos, como o da cabotagem - que por determinação legal só pode operar com navios brasileiros - não consegue fazer encomendas. É válido lembrar que a participação da cabotagem no transporte de carga é ínfima, inferior a 2% do total. O quadro é prejudicial ao país, mas não poderá ser revertido sem uma indústria naval eficiente, capaz de também produzir navios mercantes.

Sem investimento em tecnologia, sem inovação, sem diversificação de produtos e, sobretudo, sem preços competitivos, a tendência é que o setor de construção naval não consiga um desenvolvimento sustentável. A sua ineficiência tende a se propagar por clientes e fornecedores, elevando custos e comprometendo serviços e a execução de programas e projetos estratégicos, como os relacionados ao pré-sal. O efeito será deletério para um país que ainda está longe de ter uma economia de fato competitiva.

Se houver vontade política, ainda há tempo para corrigir os vícios de origem, aproveitando a oportunidade de retomada da construção naval de um cluster de conhecimento que abranja todas as áreas envolvidas neste segmento, do projeto ao marketing. Neste caso, a indústria aeronáutica pode ser um parâmetro.

Nelson L. Carlini é engenheiro naval e consultor na área de transportes e logística.