Título: A previdência privada em perigo e o STJ
Autor: Souto, Fernando Schiafino
Fonte: Valor Econômico, 09/08/2006, Legislação & Tributos, p. E4

A edição das Súmulas nº 289 e 321 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), órgão incumbido da missão de unificar a interpretação da legislação infraconstitucional do país, representa um inegável perigo à higidez do sistema previdenciário privado fechado. Com efeito, ao pacificar nos referidos éditos que as reservas de poupança dos participantes que se retiram prematuramente do plano previdenciário devem ser corrigidas por índices que representem a real inflação ocorrida nos respectivos períodos, a referida corte não logrou alcançar às regras legais pertinentes a melhor exegese, como seria de se esperar, permitindo a devolução das contribuições realizadas por índices diversos daqueles previstos nos respectivos planos.

Isso acaba significando, na prática, a chancela judicial para que aqueles que se retiraram antecipadamente dos planos de benefícios definidos recebam a devolução das parcelas pessoais que foram pagas, nominada reserva de poupança, atualizadas por índices que, segundo os próprios interesses, lhes sejam mais favoráveis, assim entendida a correção pelo maior deles, em evidente detrimento daqueles indexadores que supedanearam o plano atuarial - que é o plano, em suma, que garantirá a todos o recebimento futuro de um dado benefício.

De outro modo dito, a referida interpretação jurisprudencial, cristalizada na Súmula nº 289 do STJ, permite aos ex-participantes receberem da entidade de previdência privada mais do que aquilo que pagaram, em arrepio à mais comezinha regra de equilíbrio financeiro, por todos entendida, desde a dona de casa ao técnico atuário. Na verdade, o entendimento que subjaz à edição da súmula referida parte da incorreta premissa de a relação previdenciária deve ser analisada como uma relação jurídica individual, desvinculada dos milhares de outros contratos previdenciários igualmente travados entre participantes e fundos de pensão.

Vale dizer, nega-se à relação previdenciária privada o seu inescondível caráter comunitário, que dita a impossibilidade da sua análise desapegada da sua função social. A ninguém é dado receber de outrem mais do que pagou, e a desconsideração desta natural regra do direito coloca em perigo a saúde financeira das entidades de previdência privada fechadas. E não se diga que a devolução das contribuições por índices que recomponham a corrosão inflacionária dos períodos atende à exigência de justiça, uma vez que a correção monetária não é um plus que se acresce, mas um minus que se evita. Isso até seria verdadeiro se tivéssemos no país um único indexador inflacionário. Todavia, não é essa a nossa realidade. Possuímos um sem-número de índices, dos mais diversos matizes, desde os mais singelos até os mais complexos, advindos das mais variadas instituições, oficiais e privadas.

-------------------------------------------------------------------------------- No mesmo sentido é a Súmula nº 321, que diz que sobre os contratos incidem as regras do direito do consumidor --------------------------------------------------------------------------------

Portanto, é natural que os indexadores variem entre si, posto que representam a recomposição de diferentes componentes. E qual deles contempla a verdadeira recomposição inflacionária? A súmula em referência não define ou explica, o que tem servido, infelizmente, de justificativa para a prevalência daquele índice que, segundo a variação da hora, represente percentual mais elevado. Alguns Tribunais de Justiça (TJs) estaduais têm dito que o índice que melhor representa a recomposição das perdas inflacionárias é o IGPM da Fundação Getúlio Vargas (FGV), outros que é o IPC da Fipe ou do IBGE, para o período de março de 1986 a fevereiro de 1991, e ainda há aqueles que defendem ser o INPC, mas o que todos deveriam assentar, de modo unívoco, é que o índice apropriado, independentemente do seu nome ou da sua composição, é aquele previsto no respectivo regulamento.

No mesmo diapasão é a Súmula nº 321 do STJ, a qual determina que sobre os contratos de previdência privada fechada incidam as regras do direito do consumidor. Novamente aqui é visível o equívoco. A natureza da relação previdenciária privada é comunitária, e sua interpretação não pode ser sectarizada ou desapegada dos contratos dos outros participantes. Trata-se de relação de natureza singular, que possui regras especiais a ensejar interpretação própria, que a distingue das demais relações civis, vez que advinda de um sistema baseado na constituição de reservas que garantam, sempre, o benefício contratado. Não é exagerada a afirmação de que os fundos de pensão, em verdade, são os seus próprios participantes, porque são estes, em última análise, que suportarão eventuais déficits advindos do desequilíbrio financeiro e atuarial do plano. Inaceitável, pois, que se equipare a relação previdenciária privada com uma relação de consumo, alçando à mesma patamar exegético idêntico àquele que se empresta à compra de batatas em um supermercado, por exemplo.

Portanto, as súmulas em referência devem ser revistas o quanto antes, a fim de que a higidez do sistema previdenciário privado fechado seja preservada, em benefício dos próprios participantes remanescentes.

Fernando Schiafino Souto é advogado e sócio do escritório Souto Advogados Associados