Título: Caminhada na trilha do Curupira
Autor: Chiaretti, Daniela
Fonte: Valor Econômico, 15/08/2006, EU & Investimentos, p. D6
A aventura começa passando óleo de piquiá no corpo, para espantar mosquitos. A idéia é andar 18 quilômetros até quatro árvores gigantes e voltar ao barco. Parece muito trabalho para pouco. Mas depois da suadeira, a sensação é a de ter andado em outro planeta.
Maguary fica na Floresta Nacional do Tapajós, a Flona, onde cada família tem seu seringal. As seringueiras dão até 20 quilos de látex por dia, mas o dinheiro é pouco. Joaquim Dias Pedroso, 60 anos, diversificou e virou guia da mata. O filho Joacy segue seus passos.
Joaquim entra lépido na floresta, praticamente o quintal de casa. E vai apontando: "Estas folhas dão chá pra curar dor de barriga; este é o breu branco, o do perfume". Uma florzinha vermelha está longe de ser meiga. Joacy dá o recado: "É o mata-calado. Comeu, já viu...".
Quando nenhuma árvore parece interessante, os mateiros abrem o baú de contos. "De repente, muitos ratos atravessaram a trilha. A gente sabia que a onça estava perto", lembra Joacy. O pai aponta um cipó que parece peça de design já pronta, e fala, baixo, bem baixo. "O Curupira é uma coisa invisível. A gente escuta só o barulho, um fiu...". Dá arrepio, no meio da mata, ouvir o canto alto de um pássaro. Por sorte, nenhum "fiu".
Curupira é ela? É ele? Joacy diz que não se trata de uma questão de gênero: "É ela, é ele, não sei. Se a gente suspeita que está por perto, é melhor 'quietá'. Também não deve falar o nome. A gente chama 'vovó'". Curupira é o Lorde Voldemort da Amazônia, "aquele que não deve ser mencionado", da saga de Harry Potter. "Quando faz muito barulho na floresta, ela não gosta". Pelo sim, pelo não, o grupo fica bem quietinho.
A Amazônia não é mata cerrada. Há espaços entre as árvores e caminha-se sempre com a sensação de estar sendo visto. A pitomba de macaco, uma espécie de nêspera, é refresco na hora em que a trilha vira subida íngreme. São 50 metros de matar. Quando se pensa que não se quer mais ir a lugar algum, e que andar aquilo tudo para ver quatro árvores é uma esquisitice feroz, Joaquim aponta uma clareira. A pausa tem vista: o Tapajós é bonito daqui de cima.
A primeira samarúna está perto. Decepção total: é uma árvore como as outras, em proporção, com espinhos no caule verde. "Esta é bebê, deve ter dez anos", diz o mateiro. Quando os pés já estão doendo, Joaquim indica um obstáculo no chão. "É a raiz de uma delas. São tão espalhadas que a gente encontra a 100 metros do tronco". Mais 15 minutos para subir 60 metros. De repente, um muro de árvore. É um prédio de 70 metros de madeira. "Vieram uns técnicos. Éramos 13 e não conseguimos 'atracar ela'", diz Joaquim. Calcula-se que tenha 400 anos. As outras duas estão 15 minutos à frente.
A maior samarúna surge como um templo. Dá torcicolo olhar para cima do gigante de 700 anos. Para abraçá-la precisa de 31 pessoas; para rodeá-la, mais de 40 passos. Ali, dizem, e acreditam, é a morada do curupira.
Em um de seus flancos, o grupo senta para fazer um piquenique. A agência providenciou toalha vermelha e branca, castanhas e refrigerantes. Joaquim se anima e, em minutos, transforma folhas de curuá em uma mochila para carregar ouriços de castanha e o que mais precisar. Se sobrar fôlego, é interessante dar um pulo na cooperativa que trabalha o látex das seringueiras e o transforma em bolsas, estojos e bolas, o chamado couro ecológico.
A volta é dura. Outros nove quilômetros em horário de muito calor. A bicharada se cala, deve estar dormindo. No deque do barco, um escalda-pés estará pronto - com florzinhas amazônicas para enfeitar. O cansaço bate, o barco navega e a gente pensa nas samarúnas, avançando pelos séculos e abrigando o Curupira. (DC)