Título: Piracaia com bolinho de piracuí "ardoso"
Autor: Chiaretti, Daniela
Fonte: Valor Econômico, 15/08/2006, EU & Investimentos, p. D6

Tupaiú, o barco todo branco, aguarda no porto de Santarém, no Pará. A mesa da sala tem salada de frutas em cuias com grafismos indígenas e uma jarra de suco alaranjado. "É taperebá", diz o guia Wilson Marx. Taperebá no Norte, cajá no Nordeste. Nas boas-vindas, já se entende: viajar pela Amazônia exige tradutor-intérprete.

O barco zarpa ladeando Santarém. O que parece terra, do outro lado, são as águas barrentas do Amazonas. Começam-se a ouvir palavras exóticas que serão repetidas nos cinco dias da jornada pelo Tapajós: o pirarucu se pesca de azagaia, uma espécie de arpão, e chega a 250 quilos; rio menor é igarapé, e igapó não é nem rio nem riacho, é terra inundada. Embaralha-se tudo enquanto o Tupaiú vai subindo o afluente da margem direita do Amazonas.

Mesmo com o roteiro da viagem colado em cada cabine, não se entende bem em que ponto do Brasil se está. A Amazônia funciona por outros paradigmas. Não tem primavera nem outono, é como nos pólos. No verão, de junho a novembro, as águas baixam; no inverno é cenário de mundo submerso. Este ano a cheia foi violenta, as águas subiram dez metros.

A noite chega e o barco pára de repente. Ninguém conta nada, nem Isabela Vilela de Abreu, a anfitriã da Matueté, empresa que organiza a viagem, nem Iza Bacelar, da Santarém Tur. As margens estão perto e o breu total sugere que, por ali, só tem mata. O som da floresta é não ter som nenhum. Em noite sem lua, olhar pra cima é um susto - tem pouco céu pra tanta estrela.

No barco a motor chega-se até um caminho iluminado por velas. A primeira incursão na floresta dá frio na barriga - onde estarão agora as onças, as cobras, as aranhas? A recepção cabocla é calorosa: fogueira, violão e violeiro e uma mesa debaixo da cabana. É noite de piracaia, como se chama a balada amazônica, com fogo, tucunaré assando, cerveja e amigos.

Antonio Rodrigues, o violeiro e dono da casa, nasceu ali há 37 anos. O lugar mais longe que já foi fica há 12 horas de barco. Vive com a mulher e os quatro filhos na casa de paredes e teto de curuá, que ele mesmo armou, como na fábula dos "Três Porquinhos". Sonhos? Abandonar as redes e comprar um monte de beliches. Luz, só a da lua e a da fogueira.

Antonio trabalha na escola da vila próxima, Urucureá, comunidade do Arapiuns, um braço do Tapajós. Foi seminarista e não desistiu da idéia de ser padre, conta, entre canções que falam de rios, de cobras gigantes e Chico Mendes. O primeiro jantar na Amazônia, com todo mundo sentado sobre almofadas, é peixe no espeto, arroz com farofa, mandioca e prosecco.

A visita à vila acontece de manhã. Um grupo de 38 mulheres faz coisas lindas em palha de tucumã. Cestinhas e cestões, porta-CDs, porta-pão, porta-tudo, em versões coloridas com pigmentos naturais. O artesanato é o filé de muitas famílias que complementam a renda com a venda de peixe e farinha. O apoio à empreitada veio da ONG Projeto Saúde e Alegria, PSA. Durante a viagem, o nome PSA será escutado em várias comunidades, quando os moradores falam de kit-cloro, de redução da mortalidade infantil, de energia solar.

Urucureá tem 360 habitantes, a metade está na escola Dom Pedro I. No pátio, avisos de bingos (toalhas de banho são o grande prêmio) e dia da vacina. Na igreja de São Miguel Arcanjo tem missa três vezes ao ano, que é quando o padre vem, batiza e casa de baciada. Há uma rádio comunitária e um centro para jovens. Televisão, só à bateria.

O barco entra no Canal do Jari e precisa apertar os olhos para ver as iguanas camufladas nos troncos das árvores. O almoço será em Arapixuna. Na vila, em primeiro plano, uma grande cruz, e uma igrejinha logo atrás. A praça tem hibiscos, orelhão e coreto. No lugar dos velórios, um caixão empoeirado é bom presságio: "Encomendamos para um senhor que estava desenganado. Mas aí, o homem ressuscitou", conta um morador.

Joana Mota Silva é a mestre-cuca do pato a tucupi. Fala enquanto mexe na panela de barro: "Rala a mandioca, espreme para sair o suco. Aí ferve e tira a 'fortidão'". O almoço é no quintal da casa, com toalha e flores de plástico, chão de terra e enfeite de bandeirinhas. Um sagüi vem espiar a bagunça.

O líder da comunidade, Gabriel Pinto da Silva, dá as boas-vindas. Viu e viveu todos os ciclos recentes - o do cacau, o da juta, o da borracha - mas desconversa quando se pergunta se agora é a hora da soja. "A gente gosta é da floresta em pé". Em Arapixuna vivem 1.500 pessoas. A energia vem de um gerador a diesel, dura 1h30, o tempo de assistir à novela das 19h. Pelo luxo, cada família paga R$ 15 por mês.

A soneca nas redes do barco é interrompida quando o capitão Luiz Gonzaga aparece com varas de bambu e iscas de carne. Pescar piranhas requer habilidade: joga-se a linha e tem que puxar rápido, ou quem fica com o troféu é o peixe. Elas chegam triscando no anzol, prontas para morder o primeiro dedo que estiver de bobeira.

A próxima parada é para olhar o pôr-do-sol e a revoada dos pássaros. "Os turistas vêm para a Amazônia querendo ver muitos animais. Mas aqui não se vê tanto bicho", diz Isabela, da Matueté. É só falar que uns botos se aproximam. O tucuxi é cinza, o cor-de-rosa é bege e raro. Pulam das águas para as festas regionais, como a do Çairé, a mais badalada de Alter do Chão, quando dois blocos saem defendendo seus estandartes, cada qual com seu boto.

As manhãs no Tupaiú são assim: chuva fina e calorão. O café no barco é farto em sucos, bolos e frutas (e na hora do lanche, pode até ter brigadeiros). Mas desta vez é diferente. A proposta é uma caminhada pela floresta, em Maguary, e a idéia é comer leve. A expedição vai levar o dia todo e, na volta, o destino é Alter do Chão. Depois de tanto andar, é bom xeretar a biblioteca do Tupaiú. Um livro fala sobre os rios de água branca (que são os mais barrentos, vai entender) e dos ácidos, como o Tapajós, com águas mais cristalinas, menos fauna (e menos mosquitos). Araras são fiéis a um único parceiro - e, coisa trágica, quando o outro morre, algumas voam para o alto e fecham as asas, despencando de lá de cima.

O barco pára e já se sabe que alguma coisa virá. O Tupaiú estacionou em uma língua de areia e o luau promete: o sofá, esculpido na areia, está encoberto por chitão; a mesa, também de areia, tem até coqueiro no centro. Levaram cinco horas para esculpir tudo. Os bolinhos na mesa são de piracuí - "tá bem 'ardoso' de pimenta", avisa a cozinheira Carmita, do Tupaiú. Para quem quer achar estrela cadente, tem uma esteira com almofadas um pouco adiante. Só de manhã é que se entende onde se estava. No lago Jurucuri, em Alter do Chão.

A vila, distrito de Santarém, vive do turismo e no verão alucina, com centenas de praias fluviais. Na Escola do Cajueiro a proposta é original. Logo que se entra no terreno, um escorregador de madeira é a saída da casinha na árvore. As salas de aula são duas "ocas" e o ensino procura despertar nos pequenos paraenses o gosto por aprender, sem ter que copiar letra. Quem pode pagar, paga. A maioria das crianças são "adotadas" por voluntários que custeiam seus estudos.

A vila tinha um museu. Era o Centro de Preservação das Artes Indígenas, criado pelo americano David Richardson. O homem recolheu peças pela Amazônia e montou o que talvez tenha sido o acervo mais completo da região. Richardson morreu e o museu fechou.

Na última noite no Tapajós, o Tupaiú pára em um cais deserto. Tudo pronto para o churrasco, Iza conta a lenda do boto - o homem lindo de terno branco e chapéu que surge na festa, dança com a mulher mais bonita e some no rio. Nove meses depois, a moça dá a luz. É o tempo de acabar a história que aparece uma dançarina no cais e, depois, um homem de branco. No final, não é que o moço se joga no rio, no meio na noite, de chapéu e tudo?

Antes de chegar a Santarém, o Tupaiú pára outra vez: aula de geografia in loco no encontro das águas do Tapajós e do Amazonas. A fronteira é tão nítida que parece cortada a laser. O Amazonas é mesmo um rio nervoso; o Tapajós, tranquilão e azulado. Na série das lendas da Amazônia, tem uma para este momento: dizem que quem atira uma moeda na linha do encontro, tem sorte para toda a vida.