Título: Tá legal, eu aceito o argumento
Autor: Guardado,Fernanda
Fonte: Valor Econômico, 13/04/2012, Opinião, p. A14

Mas não me altere a política econômica tanto assim. Se é inegável que a crise de 2008 trouxe questionamentos importantes e consequentes quebras de paradigmas (no Brasil, em particular) em relação à política econômica de consenso vigente até então, é também necessário separar o que havia de bom e de ruim na antiga ordem antes de se mudar por inteiro o ritmo do samba.

Começando pelas mudanças bem-vindas em nosso país do samba e carnaval, há de se convir que a nova onda de regulamentação macroprudencial é uma evolução benfazeja e esperada ante o aumento da alavancagem e a falta de prudência demonstrada pelos sistemas bancários, principalmente dos países desenvolvidos. Ao contrário do pensamento em voga até 2007, os agentes têm muito pouco incentivo à autorregulação e a um comportamento anticíclico em suas posições. A regulação brasileira já era reconhecidamente mais dura do que a dos países desenvolvidos e pode ter sido uma das grandes responsáveis pela solidez do sistema bancário local em meio à crise (afinal, já passamos pela nossa turbulência bancária de grandes proporções na época do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional - Proer).

É certo que algumas "inovações", como o requerimento de capital anticíclico ou a elevação no capital exigido dos bancos, deverão contribuir para coibir excessos de alavancagem que penalizam a economia, em geral em seus momentos de reversão, como se vê na Europa e nos EUA. Inicialmente, vista com grande descaso no Brasil, em parte devido ao seu efeito incerto sobre a demanda agregada em um momento de aceleração inflacionária, a regulação macroprudencial se mostrou complemento válido para a política monetária nos últimos dois anos.

Em outra frente, a crise trouxe também uma maior consciência sobre os tamanhos das dívidas públicas e, no Brasil, uma atrasada desaceleração no ritmo de crescimento das despesas primárias do governo federal.

Por outro lado, medidas recentes dão a impressão de que estão sendo lentamente abandonadas certas linhas de atuação da política econômica que serviram como pilares para que o Brasil alcançasse o status de sucesso e inveja mundial do qual goza hoje. As mesmas medidas macroprudenciais louvadas acima estão se tornando protagonistas da ação do Banco Central (BC), desbancando o ajuste da taxa de juros como instrumento principal de contenção da demanda agregada, o que diminui a previsibilidade da política monetária e a própria credibilidade do BC. Fica claro que, quando (e se) ocorrer, um ciclo de aperto nas condições monetárias passará inicialmente, se não completamente (dada a forte disposição em levar as taxas de juros na marra para a convergência internacional), por medidas de caráter "regulatório" que buscarão conter o avanço do crédito.

Não é à toa que as medidas de expectativas de inflação além de 2012 se mantêm obstinadamente acima do centro da meta de inflação. Igualmente preocupante é o abandono da agenda de reformas estruturais e a escolha por medidas pontuais de "proteção" ou "ajuda" a setores pouco competitivos da economia.

Um caso emblemático é o da reforma tributária - vale lembrar que, há anos, a carga tributária é apontada como o principal problema da indústria nas pesquisas feitas pela CNI. Não é só o tamanho da carga que incomoda e onera, mas sim sua própria complexidade, como foi lembrado na reunião recente da presidente Dilma Rousseff com empresários de diversos setores. Este é o tipo de agenda que, ainda que politicamente desafiadora e complexa, permitiu ao Brasil começar a colocar a "casa em ordem" nos últimos anos. É também uma solução muito mais eficaz e duradoura para a perda de competitividade de alguns setores da indústria nacional do que cortes temporários de imposto (que provavelmente só mudam a distribuição intertemporal da produção e do consumo) ou medidas protecionistas que os livram da competição externa.

Aliás, é realmente espantoso ver o empenho do governo em garantir que o consumidor brasileiro siga pagando o carro mais caro do mundo por meio de um abusivo imposto sobre a importação - vale lembrar que, em outubro, o Ministério Público formalizou um pedido ao Ministério da Fazenda para que fosse feita uma investigação sobre uma possível prática de lucro abusivo das montadoras. E, como ficou claro que mudou a melodia no que tange práticas protecionistas, todo tipo de lobby se organiza agora para garantir, também, a sua salvaguarda ou limitação à importação: até a "tradicionalíssima" indústria vinífera brasileira se mobiliza para conter a sanha dos merlots e malbecs importados. Infelizmente, protecionismo não melhora o terroir, e nem a competitividade e o crescimento da economia, como a década de 80 mostrou.

Assim, ainda parafraseando Paulinho da Viola, recomendar-se-ia que no atual momento de grande incerteza e volatilidade que cerca o cenário global, "faça como o velho marinheiro, que durante o nevoeiro, leva o barco devagar". Nem tudo na ordem anterior estava errado, e aproveitar a tormenta atual para experimentalismos perigosos pode minar o bom momento da economia brasileira.

Fernanda Guardado é economista Sênior da Galanto Consultoria e mestre em Ciências Econômicas pela PUC-Rio.