Título: As regras da reconstrução
Autor: Castillo, Graciana del
Fonte: Valor Econômico, 15/08/2006, Opinião, p. A19

A reconstrução do Líbano, tão cuidadosamente executada na década de 1990, agora corre o risco de ser destruída. Mas o Líbano não está só nesse respeito: de acordo com as Nações Unidas e vários estudos independentes, países em transição da guerra para a paz têm quase 50% de probabilidade de retornarem ao conflito armado. Realmente, no Timor Leste, Iraque, Afeganistão, Kosovo e em muitos outros países, a transição para a paz parece estar fracassando.

Igualmente, resta um assunto não resolvido em muitos outros países que atravessam um estágio de reconstrução. A República Democrática do Congo, (RDC), por exemplo, realizou recentemente as suas primeiras eleições em 40 anos. A estabilidade da região dos Grandes Lagos na África, provavelmente a região mais violenta do continente, dependerá do sucesso da sua transição e reconstrução.

Quando as guerras cessam, os países enfrentam uma transição multifacetada. A violência precisa ceder lugar à segurança para os habitantes; a ausência de lei e a exclusão política devem dar lugar ao império da lei e ao governo participativo; as polarizações étnica, religiosa, ou de classe/casta precisam dar lugar à reconciliação nacional; e as economias da guerra arruinadas precisam ser transformadas em economias de mercado que funcionem, que permitam às pessoas comuns tratar do seu sustento.

Essas múltiplas tarefas tornam a reconstrução econômica fundamentalmente diferente de um "desenvolvimento como de costume". Para ter êxito, a transição para a paz requer desmobilização, desarmamento e reintegração de ex-combatentes, bem como a reconstrução e reabilitação dos serviços e da infra-estrutura.

Para cumprir estas metas, o objetivo da paz deve prevalecer sobre o do desenvolvimento, se os dois entrarem em conflito. Freqüentemente, as políticas econômicas ideais e as melhores práticas não são alcançáveis - ou mesmo desejáveis. Isso também significa que programas relacionados com a guerra devem receber prioridade em dotações orçamentárias.

Naturalmente, a legitimidade do governo ou de qualquer outro organismo decisório determinará o que é possível em formulação de política econômica. Um governo nacional interino fraco - ou uma administração da ONU ou de uma ocupação estrangeira - não deve tentar implementar políticas como privatização de recursos naturais, porque esse tipo de iniciativa poderá incitar resistência política.

Realmente, é provável que a privatização inicial seja destrutiva nos seus próprios termos, porque os direitos de propriedade continuarão sendo questionados por algum tempo. Portanto, será necessário um novo padrão de medida do sucesso. Projetos precisam ser avaliados pelo critério de contribuições à paz e à reconciliação, em vez de se basearem em considerações puramente econômicas.

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As efetivas desmobilização e reconciliação em El Salvador, por exemplo, garantiram a consolidação da paz depois da brutal guerra civil ocorrida naquele país na década de 1980. Em outros lugares, porém, desconsiderar a primazia da política em uma transição para a paz já teve conseqüências trágicas.

O fracasso na desmobilização e reconciliação das facções no Líbano, onde o Hezbollah permaneceu armado, apesar da sua transformação em partido político, significou que a beligerância sempre esteve fervilhando abaixo da superfície. Igualmente, o colapso dos processos de paz em Angola e no Haiti e os vários revezes no Camboja e na Nicarágua, durante a década de 90, refletem o mesmo fracasso.

Na superfície, a ONU parece estar idealmente posicionada para liderar as iniciativas de reconstrução porque, ao contrário de instituições de fomento ao desenvolvimento como o Banco Mundial, o organismo pode integrar os objetivos políticos e econômicos que representam partes iguais de uma transição para a paz. Vez após outra, porém, a ONU revelou-se incompetente nesse papel. A transformação do Exército de Libertação de Kosovo em uma força de paz civil, por exemplo, causou enorme insegurança ao longo dos anos, fato que a administração da ONU deverá lamentar se a resolução da condição final da província não levar à independência.

Tratar a transição para a paz como "desenvolvimento como de costume" tem, além disso, conduzido à nova violência no Timor Leste, um país que no passado a ONU havia alardeado como uma história de sucesso. A exploração comercial de reservas ricas em gás e petróleo na Fenda de Timor poderia ter facilitado a reconstrução e gerado postos de trabalho para os 30% da força de trabalho desempregada. Em vez disso, com a firme aprovação do FMI, Timor Leste criou um "fundo de petróleo" ao estilo norueguês, destinado a economizar o dinheiro para dias mais difíceis. Para o Timor Leste, porém, esses dias mais difíceis são agora.

O Iraque oferece numerosos exemplos dos perigos criados por prioridades mal distribuídas. As tentativas iniciais de privatizar a indústria petrolífera iraquiana revelaram ser desastrosas, confirmando para muitos iraquianos que os ocupadores americanos estavam determinados a "roubar" a riqueza do país, atiçando, assim, as chamas da resistência violenta. Realmente, a privatização foi ainda mais bizarra como opção política porque estava fadada ao insucesso antecipadamente: os investidores visivelmente não puderam ser atraídos a comprar ativos num lugar em que os direitos de propriedade poderiam mudar assim que assumisse um governo iraquiano legítimo - um enorme impedimento para investimento também em Kosovo.

Mas os EUA não aprenderam a sua lição. À beira da guerra civil, o Iraque há pouco anunciou uma reestruturação da sua dívida externa. Em vez de melhorar os serviços e as condições de vida em áreas que poderiam ter ajudado a consolidar a paz, o governo, sob as ordens dos EUA, distribuirá centenas de milhões de dólares para pagar bancos de investimento, firmas de contabilidade e assessores jurídicos que ajudam nesse refinanciamento.

Qualquer transição para a paz poderá se revelar efêmera a menos que os políticos façam da reconciliação e integração - não políticas econômicas ideais - a prioridade fundamental. Apesar dos seus fracassos, a ONU provavelmente ainda é a organização melhor posicionada para supervisionar esses esforços. A complexidade das tarefas que os países pós-conflito enfrentam, porém, sublinha o desafio urgente de se fornecer à ONU a capacidade de cumpri-las.

Graciana del Castillo é diretora do Centennial Group, e está escrevendo um livro intitulado "The Political Economy of Peace: Lessons, Best Practices, and Policy Guidelines for Post-Conflict Economic Reconstruction" ("A Economia Política da paz: lições, melhores práticas e diretrizes políticas para a reconstrução econômica pós-conflito"). © Project Syndicate 2006. www.project-syndicate.org