Título: Peluso propõe esforço concentrado para julgar mensalão neste ano
Autor: Basile, Juliano
Fonte: Valor Econômico, 19/04/2012, Política, p. A6

O ministro Cezar Peluso deixa, hoje, a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) com uma proposta prática para a realização do julgamento do mensalão ainda neste ano: votar tudo em três semanas, de segunda-feira a sexta-feira, usando manhãs e tardes em sequência.

"Temos que começar na segunda-feira de manhã e acabar na sexta-feira à tarde", afirmou, pedindo o julgamento na primeira semana de agosto. "Por pior que seja o prognóstico de duração, o julgamento não vai durar um mês", completou Peluso, que se aposenta em 3 de setembro, quando completará 70 anos.

O ministro defendeu também a redução do foro privilegiado, que traz milhares de pessoas para o STF. Na avaliação de Peluso, não são apenas 513 deputados, 81 senadores e ministros de Estado que devem responder a processos no STF. Todos os réus que estão envolvidos em crimes ao lado de parlamentares e ministros acabam sendo julgados pela Corte. Com isso, o STF acaba tendo que julgar milhares de pessoas por causa do foro privilegiado.

Em entrevista ao Valor, Peluso reiterou críticas à presidente Dilma Rousseff ao avaliar que o momento mais difícil de sua presidência ocorreu quando ela alterou o projeto de orçamento do Judiciário. Para ele, a presidente tomou uma atitude que não poderia ter tomado, pois a tarefa de votar o orçamento é do Congresso. "Ela não tinha competência para modificar a proposta do Judiciário. Isso teria de ser analisado pelo Congresso", disse o ministro.

Para o ministro, o julgamento mais importante de toda a história do STF ocorreu na semana passada, quando a Corte autorizou abortos de fetos com má formação no cérebro (anencefalia). Mesmo vencido na votação, Peluso avaliou que o julgamento da anencefalia tratou do "fundamento da existência das pessoas". "É a partir da vida que as pessoas têm os demais direitos", explicou.

A seguir os principais trechos da entrevista.

Valor: Por que o senhor acha que o caso da anencefalia foi o mais importante do STF?

Cezar Peluso: Eu considero o julgamento mais importante na história do STF, pois ali se discutiu o fundamento da existência dos cidadãos. É a partir da vida que as pessoas têm os demais direitos.

Valor: Não dá uma sensação de derrota ficar vencido num grande caso como esse?

Peluso: É um sentimento contraditório. De um lado, eu tenho a tranquilidade de quem decidiu de acordo com a minha consciência. De outro, me dói que o meu ponto de vista não tenha sido acolhido pelo respeito que tenho com a situação.

Valor: A partir dessa decisão, a tese do aborto pode ser defendida para outras hipóteses, e não somente a anencefalia?

Peluso: O julgamento condiciona o comportamento da sociedade no caso específico do aborto de anecéfalos, mas se irradia para outras coisas. Há o risco de se defender que a partir daquele julgamento a tese possa se aplicar para outras situações. Para mim, é o julgamento mais importante. Não tem mensalão ou Ficha Limpa.

Valor: Dá para votar o mensalão neste ano?

Peluso: Eu nem faço força nem tenho gosto pessoal, mas também não desgosto de julgar o caso. Se for apresentado e eu estiver aqui, vou participar com muito prazer e cumprir o meu dever. Para mim, é indiferente.

Valor: É possível votar o mensalão em julho, durante o recesso?

Peluso: Teoricamente é possível. Mas, para que não se corra o risco de arguição de algum vício baseado no fato de que o tribunal está dando um tratamento discriminatório em relação a todos os outros casos que nunca foram julgados em julho e isso possa suscitar uma suspeita, eu não vejo mal nenhum em começar na primeira semana de agosto.

Valor: Qual o tempo, necessário para julgar o mensalão?

Peluso: Por pior que seja o prognóstico de duração, o julgamento não vai durar um mês. No máximo, 20 dias de julgamento.

Valor: Dias corridos?

Peluso: Ah, sem dúvida. Temos que começar na segunda de manhã e acabar na sexta à tarde. Será uma semana apenas para 38 sustentações [dos advogados de defesa] de uma hora cada mais as alegações do procurador-geral. Depois, temos os votos do relator e do revisor, que não sabemos o tamanho. Então, em duas semanas, talvez, consigamos. Quem sabe, em três semanas.

Valor: E como será o sistema de votação? Será por réus ou por crimes?

Peluso: Isso eu acho que vai depender da orientação do relator. Ele é que vai fazer a proposta e o tribunal vai decidir a metodologia que vai adotar. Podemos ir pelo voto de cada um, mas, nos casos de condenação, isso vai tornar mais difícil a apuração final, pois o presidente terá que ficar atento para fazer a soma dos votos.

Valor: O senhor fica até setembro?

Peluso: Como diz o Zeca Pagodinho, "deixa a vida me levar". Nelson Jobim dizia: "Cada dia com a sua agonia". Não estou aflito para me aposentar e também não estou apressado. Vou andando. Já que estou aí, posso ir até o fim. Eu tenho uma filha que é juíza e diz: "Pai, você tem que ficar até o ultimo dia do prazo".

Ele [foro privilegiado] deve ser reduzido a presidentes da República, da Câmara, do Senado, ministros do STF"

Valor: O STF está lotado de processos e muitos deles envolvem políticos. O senhor defende o fim do foro privilegiado?

Peluso: Eu defendo o fim parcial do foro. Ele deve ser reduzido. O presidente da República e os ministros do STF, por exemplo, têm que ter foro. Não é possível colocar o presidente para responder a uma ação civil em qualquer lugar. Não se pode sujeitá-lo a uma liminar que, às vezes, um juiz inexperiente venha a dar.

Valor: Quem deve ficar com foro privilegiado?

Peluso: Os presidentes da República, da Câmara, do Senado, os ministros do STF. Seriam pouquíssimos casos.

Valor: O problema é que, hoje, o STF não fica apenas com os 513 deputados e 81 senadores. Ele analisa denúncias de crimes feitos quando o sujeito era prefeito. Isso é razoável?

Peluso: Não é apenas isso. Os casos de deputados trazem outros réus para o STF. Há processos que não podem ser desmembrados. Está para acontecer agora, um caso de quadrilha em que vamos julgar um réu aqui e dois réus lá embaixo [na 1ª instância]. Desmembrou e não deu outra: houve condenação para um réu e absolvição para os outros.

Valor: Então, o foro traz milhares de pessoas ao STF?

Peluso: Sim. No fundo, 513 deputados já são problema. Mas não é só isso. O foro implica trazer prefeitos e outros réus. Veja o mensalão que começou com 40 pessoas no STF.

Valor: O STF está dividido ao julgar casos sobre a responsabilidade objetiva dos políticos por crimes?

Peluso: Pois é. Nos casos de convênios de prefeitos, por que isso tem que ser julgado aqui? Qual o interesse público tão relevante em ser julgado pelo STF?

Valor: Qual o caso mais difícil que o senhor enfrentou no STF?

Peluso: O momento mais difícil foi a discussão sobre o orçamento em que encaminhamos ofício à presidente da República [em 2011] notando que ela não tinha competência para modificar a proposta do Judiciário. Isso teria de ser analisado pelo Congresso. Citamos quatro precedentes do próprio STF dizendo que compete ao Congresso deliberar sobre a proposta de orçamento do Judiciário. Quando era presidente, Fernando Henrique Cardoso se opôs a uma parte do orçamento e fez um ofício ao STF dizendo que era contrário. Mas ele submeteu ao tribunal que mudou a sua proposta. José Sarney, quando presidente, recebeu a proposta do Judiciário e encaminhou ao Congresso com uma rubrica que ele não concordava. Ele disse que não estava de acordo, mas deixou para o Congresso resolver. Então, o Executivo pode até dizer se é contrário ou não, mas tem que encaminhar a proposta.

Valor: Houve desrespeito ao STF?

Peluso: O tribunal teve que tomar uma atitude em defesa de suas prerrogativas constitucionais. Eu não diria que foi um momento de grande tensão, mas criou uma preocupação institucional na relação entre os Poderes. Eu não tenho queixa pessoal nenhuma com a presidente Dilma. As relações nunca foram abaladas. Mas, em termos de defesa das prerrogativas do STF, eu não podia deixar de tomar essa atitude.

Valor: O debate sobre os poderes do CNJ não foi uma crise no Judiciário?

Peluso: Eu acho que tivemos uma má coincidência: decidir aquela questão num momento de efervescência em relação à discussão sobre os limites das competências constitucionais do CNJ. Se isso tivesse sido decidido num outro clima o resultado poderia ter sido diverso. Houve certa pressão...

Valor: Um clima de que ninguém investiga juízes no Brasil?

Peluso: Isso. De intimidação contra os ministros do STF que estavam aparecendo na opinião pública como se fossem corporativistas, o que está longe de corresponder à verdade. Se essa decisão tivesse sido tomada num outro clima o resultado seria diferente.

Valor: A atuação do STF em casos que seriam de competência do Congresso, como o da anencefalia, não tem retorno?

Peluso: Eu acho que isso vai depender, sobretudo, da atuação do Congresso Nacional e do mundo político. A situação do tribunal é passiva. Ele não é ator na gênese dessas questões. Mas, quando elas são suscitadas e não são resolvidas pelos canais políticos, os que se sentem de algum modo prejudicados recorrem ao STF. O tribunal não vai mudar a orientação. Vai continuar tomando atitudes que acha que tem que tomar.

Valor: E nos casos em que o STF alerta o Congresso para resolver algo e não acontece nada?

Peluso: O STF abre a possibilidade para o Congresso. É uma atitude de colaboração republicana no jogo de Poderes.

Valor: O STF deu dois anos para o Congresso aprovar uma nova lei para regulamentar o Fundo de Participação dos Estados (FPE) e o prazo acaba em dezembro. O que vai acontecer se a nova lei não for votada?

Peluso: Provavelmente, o STF vai tomar uma atitude. Em outros casos, como o aviso prévio, o tribunal alertou e aprovaram a lei. O STJ decidiu sobre o bafômetro e o Congresso se movimentou. À medida que os atores políticos resolvam se antecipar a uma decisão judicial, a questão desaparece [dos tribunais]. Isso vai depender da evolução dos costumes políticos, menos do que de atitudes do STF.

Valor: O STF está ficando mais liberal com decisões como a da anencefalia e da união homoafetiva? Como o senhor vê o perfil do tribunal a partir de seus ministros e suas decisões?

Peluso: Nos Estados Unidos, existe uma separação mais ou menos nítida do campo ideológico-partidário. Não é uma coisa de caráter absoluto, mas são blocos mais bem definidos. Há liberais e conservadores. Eles têm postulados jurídico-filosóficos diferenciados. Aqui, não temos cultura político-ideológica nenhuma. Os partidos políticos não têm ideologia nenhuma. Aqui, nenhum partido cumpre o seu programa. Isso é de certo modo produto dessa geleia geral, vamos dizer assim, da ideologia do brasileiro. É difícil dizer se o brasileiro tem um perfil conservador ou liberal. Isso se dá também na nomeação para o STF. Dificilmente, um ministro do STF pode ser definido estritamente como conservador ou liberal. Ele tem atitudes liberais em algumas matérias e conservadores em outras e vice-versa. Então, o STF é inqualificável nesse ponto de vista. Em determinados temas, o STF tem atitudes liberais e em outros, atitudes conservadoras.