Título: Estatização indica guinada no ajuste interno argentino
Autor: Felício,César
Fonte: Valor Econômico, 20/04/2012, Internacional, p. A12

A reestatização da YPF encerra de modo definitivo o ensaio de ajuste fiscal feito pela presidente Cristina Kirchner após a sua reeleição no ano passado, apelidado pela própria Cristina de "sintonia fina", ao discursar na União Industrial Argentina em novembro. Para analistas, a retomada da petroleira sinaliza uma expansão de gastos públicos internos.

"Foi uma mudança estrutural. Estatizar a YPF não é o mesmo que foi feito antes, com a Aerolineas Argentinas e os Correios. É simplesmente a maior empresa do país. Mostrou o que Cristina quer para o resto de seu mandato: o Estado como o grande líder da economia, com poder de veto sobre o setor privado", disse Marcelo Elizondo, da consultoria DNI, especializada em comércio exterior.

Segundo levantamento publicado no ano passado pelo jornal "El Cronista", a YPF era o maior faturamento da Argentina, equivalente a cerca de US$ 12 bilhões em números de 2010. Jamais houve no país expropriação desse porte.

No tempo da sintonia fina, a solução prevista para reverter o déficit energético no país passava pela redução do gasto com subsídios, primeiro passo para uma revisão de tarifas que induzisse o setor privado a voltar a investir.

"Mas o governo percebeu que a cotação da soja voltou ao patamar inicial, a economia do Brasil não vai desaquecer tanto quanto se pensava e o euro sobreviverá depois da reestruturação da dívida grega. O panorama externo melhorou, e eles se sentiram mais fortes do ponto de vista do caixa. Vão tentar reverter o déficit energético com protagonismo estatal", disse Ramiro Castiñera, economista da consultoria Econométrica.

A estratégia de acabar com os subsídios foi encerrada depois do acidente de trem na estação de Once, que matou 51 pessoas, em fevereiro. O episódio fez com que fosse demitido o secretário nacional de Transportes. Face à repercussão negativa da tragédia na imagem do governo, Cristina suspendeu a retirada do esquema que mantém tarifas congeladas e injeta nas empresas concessionárias 4% do PIB.

"A situação fiscal se tornou melhor do que se imaginava no início do ano. A arrecadação subiu 29% no primeiro bimestre, e as despesas 25%. O governo pode postergar a correção dos desajustes. E a crise da Espanha acelerou a disposição do governo de mudar a estratégia na área externa, uma vez que a YPF estava sendo demandada a remeter mais lucros para a Espanha e não investir mais na Argentina", comentou o economista Ricardo Delgado, da consultoria Analytica, que não concorda que a reestatização da petroleira seja um divisor de águas. "A preocupação do governo é orientar a principal petroleira a reter recursos no país, com menos remessas e mais produção, só isso. É uma proteção de caixa."

Para o curto e médio prazos, as consequências do abandono do ajuste devem ser um aumento da inflação real e o isolamento internacional. "A Argentina já não era um grande destino de investimento direto estrangeiro e agora retrocederá ainda mais. E o governo recorrerá a emissões monetárias para suprir essa lacuna", comentou Castiñera. "Mesmo o setor privado terá dificuldades para se financiar. O investimento deverá ficar nas mãos do Estado", disse Elizondo.

Particularmente na área de petróleo e gás, mesmo os críticos da expropriação admitem que o cenário pode ser outro. "Já estão fazendo fila para tomar o lugar da Repsol e se tornar sócios do governo", lamentou um advogado do sistema financeiro. Ontem, o governo divulgou a intenção da empresa de energia francesa Total de aumentar a produção dos campos de gás que eram explorados em sociedade com a YPF.

A intervenção na economia argentina não é um traço apenas dos mandatos de Cristina e de seu antecessor e marido, Néstor Kirchner, falecido em 2010, mas se originou no próprio governo de Juan Domingo Perón, matriz política do kirchnerismo. Nos últimos nove anos, foram realizadas diversas reestatizações e foram estatizados os fundos de previdência privados, chamados de AFJP, que passaram a ser geridos pela autarquia estatal Anses e hoje representam um caixa de 200 bilhões de pesos.

No começo do 2010, Cristina decidiu que o governo indicaria diretores em todas as empresas em que houvesse participação acionária derivada de compras feitas por esses fundos, o que fez com que o governo entrasse na direção das maiores companhias do país.

A deterioração do cenário externo fez com que Cristina adotasse medidas de restrição cambial. Os primeiros atingidos foram as pessoas físicas, em novembro. O controle das compras de dólar deteve um processo de entesouramento privado da moeda americana que chegou a US$ 23 bilhões no ano passado. Em fevereiro, foi a vez do controle sobre as importações, por meio da criação de um mecanismo que, na prática, leva todas as empresas a ter que pedir permissão para realizar compras externas.