Título: A sociedade do conflito
Autor: Sifuentes, Môniva
Fonte: Correio Braziliense, 19/10/2010, Opinião, p. 19

Desembargadora federal (TRF 1ª Região)

Nas escolas se aprende que o direito é algo produzido pelo homem para atender uma necessidade básica da convivência social: viver em paz. Para alcançar essa finalidade, o direito se propõe a resolver, pela composição ou pela imposição, os conflitos de interesses que se configurarem nas relações sociais. Desse modo, antes de ser um agente conformador da convivência social é, e fundamentalmente deve sê-lo, instrumento assegurador dessa convivência.

Esses conceitos, que os séculos de civilização construíram, soam vazios de significado quando confrontados com os números exorbitantes de processos judiciais em tramitação nos cartórios por este Brasil afora. Quando assumi o cargo de desembargador do Tribunal Regional Federal (TRF 1ª Região), em março deste ano, recebi um acervo de nada menos que 27 mil processos. Na maior parte dos casos, as pessoas pleiteiam benefícios previdenciários em torno de um salário mínimo.

Ações propostas há mais de 10 anos, em que os segurados querem a concessão de pensão por morte, auxílio-doença, revisão de aposentadoria e amparo assistencial. Idosos, trabalhadores rurais, pessoas doentes ou com necessidades especiais, aposentados, enfim, gente que pede ao Estado a garantia do mínimo para a sua sobrevivência. Situação semelhante existe não apenas nos demais gabinetes das turmas previdenciárias do TRF 1ª Região, como nas varas e juizados especiais federais que cuidam da matéria.

Para tentar reverter ou minorar essa situação dramática, os órgãos que cuidam da política judiciária, como o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho da Justiça Federal, têm concitado juízes e servidores a fazer um hercúleo esforço de julgamento, com estabelecimento de metas, mutirões e outras medidas para agilizar os processos. A Comissão de Reforma do Código de Processo Civil, em atitude honesta e bem-intencionada, coloca como um dos seus pilares a segurança jurídica e prevê vários mecanismos para diminuir o número de recursos. As associações de juízes pedem o aumento do número de tribunais, de juízes e de funcionários. No entanto, só no meu gabinete dão entrada, mensalmente, de 800 a 1 mil processos novos.

Não há, ouso dizer, medida extraordinária nem reforma processual que dê conta daquilo que os processualistas já chamaram de "explosão de litigiosidade", e que vem a ser essa impressionante sociedade conflitual em que vivemos. É verdade que a população hoje em dia está mais ciente dos seus direitos. Por seu lado, é fora de dúvida que há demanda em excesso, o que torna o litígio a regra, quando a lógica do nosso sistema judiciário sempre o tratou como exceção. A porta do Judiciário é o local para onde se corre quando os demais poderes são inoperantes.

No âmbito da Previdência Social, esse número espantoso de casos judiciais revela a face cruel da omissão do Executivo, que transforma o Judiciário no gestor dos seus problemas ou administrador da sua dívida. Quando vejo sair uma caravana da nossa Justiça Itinerante, formada por abnegados juízes e servidores que vão aos lugares mais distantes do nosso imenso território, levando o aparato do Juizado de Pequenas Causas, eu me pergunto se não seria muito melhor para todos se, em vez de juízes, essas caravanas estivessem levando os próprios funcionários e procuradores do INSS. Se eles resolvessem ao menos a metade dos pedidos dessas pessoas, quantas demandas não deixariam de chegar ao Judiciário!

A meu ver, o problema da litigiosidade não se resolve apenas com novas formas de agilizar a resolução do conflito. É necessário evitar-se o próprio conflito. Isso implica não apenas buscar outros meios de composição e conciliação, em que a intervenção do juiz se dê apenas em situações excepcionais. Implica também exigir que os poderes Legislativo e Executivo exerçam o papel que lhes cabe em um Estado democrático. Em época de exercício pleno de cidadania, quando se escolhe o dirigente máximo da nação brasileira, valeria a pena perguntar aos dois candidatos o que eles pretendem fazer para desafogar o trabalho da Justiça. Que tal?