Título: Não resta muito a comemorar
Autor: Roach,Stephen
Fonte: Valor Econômico, 16/08/2006, Opinião, p. A13
Não há nada como o poder de sedução de uma expansão econômica. O vigor recente do crescimento econômico global é um canto de sereia. Pela métrica do Fundo Monetário Internacional, o Produto Interno Bruto mundial provavelmente registrou média de 4,8% entre 2003-2006, nos quatro anos mais robustos desde o começo da década de 1970. Por mais tentador que seja extrapolar isso para o futuro, agir assim poderá se revelar um grande erro. Existe uma probabilidade muito maior de que o crescimento global já tenha atingido o pico e que a expansão econômica esteja prestes a se dissipar.
O principal propulsor de crescimento do mundo, os EUA, está reduzindo o ritmo. Este é o veredicto do mercado de trabalho, onde a expansão da criação de postos de trabalho nos quatro meses passados está 35% abaixo da média desde o começo de 2004. É o veredicto do mercado imobiliário, onde um começo de desaquecimento do setor de construção residencial está eliminando pelo menos um ponto percentual da tendência de crescimento do PIB dos três anos passados. E, apesar de um temporário retorno aos níveis anteriores nas vendas do varejo em julho, trata-se de uma mensagem do consumidor, cujo nível de crescimento de gastos ajustados para a inflação caiu para 2,5% no período da primavera - um ponto percentual abaixo da tendência estonteante da década passada.
A desaceleração dos EUA representa uma importante transição nas fontes do crescimento econômico, afastando-se da vigorosa geração de riqueza das bolhas de ativos - primeiro as ações, depois o setor imobiliário - e retornando a uma geração de renda de trabalho assalariado mais contida. O impacto diferido das taxas de juros mais altas também está cobrando um preço. Apesar de o Federal Reserve [Fed, o Banco Central dos EUA] ter suspendido a sua campanha de aperto monetário de dois anos de duração, há um risco de que ele já tenha ido longe demais. A confluência de preços de energia mais caros, o peso crescente do serviço da dívida e as taxas negativas de poupança pessoal reforçam a possibilidade de um recuo no consumo espontâneo dos consumidores e no crescimento do PIB dos EUA.
Esta é uma transição igualmente crítica para a economia global. O mundo está perto de perder apoio considerável da mais importante força motriz no lado da demanda da equação - o consumidor dos EUA. Num ambiente pós-bolha, as famílias dos EUA não conseguirão poupar por meio de apreciação de ativos, levando o país a aumentar a poupança baseada em renda e a reduzir sua parcela no fundo comum da poupança global. Isto aponta para uma longamente esperada redução no volumoso déficit em conta corrente dos EUA - que inicialmente será penosa para economias dependentes de exportações nos demais países do mundo, porém, em última instância, representa uma grata solução para desequilíbrios globais.
Mas quem preencherá o vazio assim que o consumidor dos EUA recuar? A resposta simples é: talvez ninguém. A Europa, segunda maior consumidora do mundo, é uma candidata improvável. Um crescimento econômico surpreendente no continente europeu neste ano pode estar se apropriando de ganhos que de outra forma poderiam vir a ocorrer em 2007. A economia européia está prestes a ser atingida por um "revés triplo": um rígido aperto na política fiscal, o impacto retardado do aperto monetário e o estorvo de um euro mais forte. O crescimento na zona do euro poderá superar os 2,5% neste ano, assinalando o mais robusto ganho desde 2000. No próximo ano, ele poderá retornar para abaixo de 1,5%.
Igualmente, não conte com uma economia japonesa rejuvenescida para compensar a diferença. Em termos de dólar, o consumo pessoal japonês é apenas 30% do consumo nos EUA; isto significa que cada ponto percentual de redução no crescimento do consumo nos EUA precisaria ser substituído por aproximadamente três pontos percentuais de aceleração vinda do Japão. Como indica um fraco registro do PIB no segundo trimestre, uma expansão desta envergadura é improvável, especialmente num momento em que o Japão enfrenta um iene mais forte e preços de energia mais caros. Se por um lado o crescimento do PIB japonês deve superar 2,5% neste ano, em 2007, por sua vez, ele pode diminuir para menos de 2%.
Da mesma forma, é improvável que os dois dínamos da Ásia em desenvolvimento - China e Índia - consigam conter a tendência de diminuição no mundo em desenvolvimento. A China tem uma economia gravemente superaquecida. Com um PIB real arrancando a uma taxa anual de 11,3% no período da primavera e com a produção industrial crescendo a um nível recorde de 19,5% de um ano para o outro, em junho, Pequim não tem alternativa exceto introduzir iniciativas de endurecimento. Deixar de fazê-lo poderá levar o protecionismo comercial externo a restringir as exportações e uma capacidade ociosa poderá levar a uma retração no investimento, com conseqüências deflacionárias. A China precisa mover a sua economia na direção do consumo privado, um setor que despencou para apenas 38% do PIB em 2005 (Uma taxa salutar seria pelo menos 50%).
Tudo isso aponta para uma moderação do ritmo de crescimento da China a partir de 2007, com as resultantes reduções no seu apetite voraz por commodities. Isso deverá ter o efeito adicional de reverberar em produtores de commodities como a Austrália, Canadá, Brasil e África. Os grandes produtores de petróleo do mundo também sentiriam as repercussões de uma queda na atividade econômica chinesa. O mesmo ocorreria com os fornecedores asiáticos da China, como o Japão, Coréia e Taiwan.
A Índia é pequena demais para melhorar a situação - tem menos de metade do tamanho da China com base no poder de paridade de compra. Depois de mais de 15 anos de reformas, seu crescimento se manifestou pelo potencial de alta - crescendo a uma média de 8% nos anos fiscais 2004-2005. Houve uma esperança de que um reequilíbrio do setor de serviços para o de produção proporcionaria um novo ímpeto para o crescimento e o governo pareceu disposto a equacionar as deficiências de infra-estrutura, investimento direto estrangeiro e poupança. Infelizmente, os reformadores foram impedidos pela política de condução da coalizão. Imperativos de consolidação fiscal, aliados aos efeitos diferidos do recente aperto monetário, também poderão causar uma expectativa de baixa nos riscos do crescimento.
Há um significado mais profundo no desaquecimento que se aproxima. A expansão global dos quatro anos passados jamais foi sustentável. Ela foi apoiada pelos excessos do ciclo de liquidez, que se originaram a partir das medidas anti-deflacionárias dos grandes bancos centrais do mundo. O vigor resultante do crescimento global foi dominado pelo consumidor dos EUA, porém a farra do país ocorreu às custas de uma redução recorde das reservas da poupança interna, capitalizada pelos ingressos de capital de um déficit recorde na conta corrente dos EUA. O surto de expansão foi equilibrado precariamente sobre desequilíbrios globais sem precedentes.
O excesso de liquidez ganhou tempo para um mundo precário. Quando os bancos centrais se articularem para normalizar a política monetária, esse tempo já terá se esgotado. Sem o apoio insustentável de bolhas de ativos, retornamos aos conceitos básicos: com a demanda agregada apoiada por geração de renda assalariada mais modesta, em vez dos excessos da geração de riqueza. Chega de expansão artificial num mundo desequilibrado. Ela pode estar próxima de se dissipar.