Título: Lavagna defende o modelo argentino desenvolvimentista
Autor: Saccomandi, Humberto
Fonte: Valor Econômico, 16/08/2006, Especial, p. A14

Por que o Brasil não cresce como a vizinha Argentina? Essa pergunta já entrou na campanha eleitoral brasileira. Por causa dos juros altos e do câmbio valorizado. Essa é a resposta de Roberto Lavagna, ex-ministro da Economia e pai da atual política macroeconômica argentina. Ele não fala especificamente do caso brasileiro e evita colocar a Argentina como modelo para o Brasil. Mas reitera que considera juros baixos e câmbio desvalorizado os dois pressupostos para o crescimento econômico.

O economista Lavagna assumiu o Ministério da Economia argentino no início de 2002, no auge da crise que se seguiu ao abandono do regime de conversibilidade e à desvalorização do peso. Sob intensa pressão contra do Fundo Monetário Internacional, ele liderou o maior processo de reestruturação de dívida soberana da história.

Em novembro de 2005, com o país em franca recuperação, Lavagna deixou o governo, segundo ele por discordar da guinada intervencionista do presidente Néstor Kirchner e pela aproximação do país com o regime populista do venezuelano Hugo Chávez.

Agora, aos 64 anos, Lavagna tenta montar uma coalizão que viabilize sua candidatura à Presidência nas eleições de 2007, contra seu ex-chefe. Não é uma missão fácil. Seu grupo reúne desde liberais e conservadores descontentes do Partido Justicialista, de Kirchner, até desenvolvimentistas e esquerdistas. Segundo pesquisas, Kirchner é amplamente favorito á reeleição.

Lavagna veio a São Paulo para participar de um evento do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais), em parceria com Ceal (Conselho de Empresários da América Latina), sobre a inserção do Brasil e da Argentina no cenário internacional. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Valor: O que o sr. dirá sobre inserção internacional?

Lavagna: Direi que nos últimos anos nossos países perderam parte de sua influência no cenário internacional. Há muito discurso, mas na realidade objetiva, que tem a ver sobretudo com o peso econômico, perdemos participação. Toda a América Latina perdeu. O crescimento nos últimos anos é muito inferior ao do Sudeste Asiático, com o que essa região foi ganhando importância.

Valor: Mas é possível crescer como o Sudeste Asiático?

Lavagna: Muitas vezes depende da política econômica. O Sudeste Asiático fez uma política econômica em geral distinta. Um fator, por exemplo: a América Latino tem o dobro de acordos com o Fundo Monetário Internacional que o Sudeste Asiático...

Valor: Isso está acabando, não?

Lavagna: Está acabando, mas a história conta. O Sudeste Asiático não adotou o Consenso de Wa-shington, como fez toda a América Latina. Certamente aí está parte da explicação: taxas de juros muito altas, câmbio valorizado, o contrário do que fez o Sudeste Asiático.

Valor: É o que o Brasil ainda faz?

Lavagna: Isso é você que está dizendo. Eu não disse nada. Mas é o que fez a Argentina nos anos 90. O Sudeste Asiático, mesmo sem China e Índia, cresceu nos últimos anos o dobro dos nossos países. A parte industrial cresceu mais que o dobro. A parte industrial com conteúdo tecnológico cresceu o triplo. Isso fez com que o peso dos nossos países tenha diminuído.

Mesmo no caso do Brasil, que nos últimos anos teve a estratégia dos Bric [acrônimo de Brasil, Rússia, Índia e China]. A China cresce mais de 9%, a Índia, mais de 7%, a Rússia, mais de 6%, e o Brasil cresce 2,5%. Alguma coisa não está certa.

A reflexão é se podemos recuperar parte da influência que perdemos. Até os anos 70, o peso da América Latina era maior.

Valor: No Sudeste Asiático, muitos governos são autoritários ou pouco democráticos. É possível se comparar com eles?

Lavagna: Sim, há diferenças culturais e políticas. A China certamente não é muito democrática. Mas o Japão é democrático e conseguiu crescer muito. Por que procurar outras causas se há um fator em comum na taxa de juros e no câmbio. O potencial de crescimento dos nossos países é maior do que o que estamos tendo. Mas, com altas taxas de juros, o crescimento ou é menor ou tem uma deformação em favor do setor financeiro, com perdas no setor real e produtivo da economia.

Valor: O sr. esteve no governo por quase quatro anos. Quais são os obstáculos para se fazer a política que o sr. entende como correta?

Lavagna: São decisões de ordem política. É preciso estar disposto a não ser elogiado pelo "Financial Times", pelo "Wall Street Journal" e pelo FMI. A Argentina fez duas reestruturações de dívida, uma em 1999 e uma em 2001, ambas muito elogiadas. As duas fracassaram. Estou convencido de que essa reestruturação que fizemos depois criou oportunidades de crescimento distintas. O país precisava ter a coragem política de fazê-lo.

Há dois exemplos recentes de países que não fizeram o que o consenso internacional dizia: a Malásia, na crise asiática do final do século passado, e a Argentina no começo deste século. E os resultados foram bons. Não é necessário entrar em conflitos, você pode fazer essas políticas com seriedade. Elas não são necessariamente Chávez [presidente da Venezuela].

Valor: Em entrevista recente ao Valor, o presidente do banco central do Canadá foi muito duro com a política econômica argentina, dizendo que o país corre o risco de um novo ciclo de crescimento não sustentável, com forte expansão seguida de nova contração. Há esse risco?

Lavagna: O último informe do FMI diz o mesmo, que a Argentina precisa subir a taxa de juros e valorizar o peso. Isso é o que pensam todos os banqueiros centrais, é o saber convencional. É o que não fez a Malásia, que melhor saiu da crise asiática, e foi o que não fizemos nós. Com um esclarecimento: fazer uma política distinta tem requisitos também importantes. Por exemplo, a Argentina teve superávit primário de 4,5% do PIB no ano passado. Este ano, e isso me preocupa, há uma certa redução. Ficará entre 3% e 3,5%. Cuidado com essa tendência. Uma política distinta não significa coisas mais fáceis.

Valor: Se fala muito sobre o risco de alta da inflação na Argentina. Esse risco está superdimensionado?

Lavagna: Sim e não. Em todas as megadesvalorizações no mundo, no Brasil, na Turquia, no México, na Rússia, normalmente nos dois primeiros anos há um transferência importante para os preços. Na Argentina, isso não ocorreu. Essa transferência está ocorrendo agora. Mas, ainda com os 11% de 2005 e suponhamos 11% em 2006, a transferência total será menor que em todas outras desvalorizações. Esse é um fenômeno normal, atrasado de dois anos. Esta é a parte exagerada na questão da inflação.

Mas há uma parte que pode não estar exagerada, que depende do que do será feito daqui por diante. Vamos continuar com o superávit primário forte? A política fiscal será antiinflacionária? Não se sabe.

Valor: Quais são os principais desafios para a economia argentina?

Lavagna: É a inserção no mundo. Na China, na Índia, e mesmo no México e no Brasil, que têm quase 200 milhões de habitantes, o trabalho é muito importante para conseguir uma produtividade que permita a inserção nos mercados internacionais. Na Argentina, com 37/38 milhões de habitantes, a cultura do trabalho não basta. Nunca vamos competir em produção em massa com China, Índia e mesmo com o Brasil. Na Argentina, como em outros países pequenos e com população relativamente preparada, temos de desenvolver uma cultura da inovação e da qualidade, competir com a qualidade, a diferenciação. É preciso achar nichos de mercado, com qualidade e alta produtividade. E a macroeconomia precisa ajudar, com uma taxa de câmbio ou de equilíbrio ou...

Valor: Asiática...

Lavagna: Sim, asiática, e taxas de juros reais não muito altas. Com essas três coisas o país pode aspirar a crescer acima de 5% por ano, com uma inserção mundial distinta.

Valor: Em relação ao câmbio, como manter a taxa estável ou asiática [subvalorizada] com um volume recorde de entrada de dólares por conta da balança comercial?

Lavagna: Aqui no Brasil fala-se só do fluxo real, mas há o fluxo financeiro. Nós paramos esse fluxo. Fizemos o que o Chile fez.

Valor: Mas, ainda assim, o fluxo de dólares do comércio é muito alto.

Lavagna: Mas formas de gerar demanda cambial. Pode-se pagar dívidas, como com o Banco Mundial. Nós há dois anos impusemos um imposto de 30% sobre os capitais estritamente financeiros. Todos os estudos dos bancos de investimentos reconhecem que nessa volatilidade recente dos mercados internacionais, a Argentina sofreu por causa desse imposto, que na época todos criticaram. Não vejo qual o interesse de atrair capitais especulativos.

-------------------------------------------------------------------------------- Com altas taxas de juros, o crescimento ou é menor ou tem uma deformação em favor do setor financeiro --------------------------------------------------------------------------------

Se o fluxo é tipicamente comercial, a lógica é que o câmbio se valorize lentamente, como ocorreu na Argentina. No Brasil vocês passaram de R$ 3,15 [por dólar] a R$ 2,15 em 18 meses. É impossível uma dinâmica desse tipo baseado somente em fluxo comercial.

Os países asiáticos, com superávits comerciais altíssimos, dão um jeito para que o câmbio não se valorize. O Japão o fez por 20 anos. Depois a Coréia. Agora a China.

Valor: Mas a China usa um sistema de câmbio fixo, não flutuante?

Lavagna: Então talvez seja melhor não usar o câmbio flutuante. Esse é outro problema: acreditar que há uma ideologia de como deve ser o sistema de câmbio. Isso depende das circunstâncias. Pode ser flutuante ou fixo. É o que não entendem o Banco Mundial e o FMI, que funcionam com um conteúdo ideológico muito alto.

Mas os resultados estão aí. Inclusive em distribuição de renda, a tendência dos países asiáticos é melhor que a da América Latina. Apesar das mil diferenças, como negar que o modelo deles é melhor? E o que têm no macro: câmbio desvalorizado e taxa de juros menor. Não se pode sacralizar modelos, mas essas são as condições necessárias. Se você fizer todo o resto certo, mas a macroeconomia não ajudar, não vai funcionar.

Valor: O sr se postula como possível candidato à Presidência contra um governo do qual participava até há pouco tempo. Por quê?

Lavagna: Porque houve uma mudança depois das eleições legislativas do ano passado. Há uma maior intervenção do Estado na economia: controles de preços, tomadas de participação acionária em aeroportos, companhias aéreas, a reestatização da Águas Argentinas [empresa de saneamento]. Sou contra o Estado atuar em áreas não necessárias. Deve atuar nos bens públicos básico, que são educação, incluindo ciência e tecnologia, saúde, segurança e instituições. É nisso que o Estado tem de por sua capacidade de administração e os recursos que tem.

A outra diferença é em política internacional. O governo tem hoje uma proximidade forte com Chávez. Creio que isso é ruim para a Argentina e para o Mercosul.

Valor: O sr. crê que esse viés intervencionista do presidente Kirchner seja uma convicção dele ou uma necessidade imposta pela momento?

Lavagna: Necessidade, nenhuma. Nenhuma dessas empresas decidiu deixar a Argentina. A Águas foi embora porque não chegou a um acordo com o governo [para reajustar tarifas]. E não chegou a um acordo 50% porque o governo queria ficar com a Águas, e 50% por problemas dos acionistas da Suez, que estavam numa batalha interna e quiseram usar o caso argentino. Mas a empresa não queria sair.

Valor: Então o sr. propõe aos argentinos um Estado menor?

Lavagna: Eu digo: atenção, a Argentina vem de uma época [os anos 90] em que o Estado estava ausente, mas não pode passar para o outro extremo. A presença do Estado, algo sobre o que o FMI e o Banco Mundial também se equivocaram na década passada, é essencial, mas em bens básicos.

Valor: É possível vencer o presidente Kirchner nas eleições?

Lavagna: Ele é popular, e em parte por causa da política econômica e dos êxitos da economia. Nos últimos meses conseguimos influenciar a agenda do governo. Hoje já vejo algumas correções. Vamos contribuir à agenda e para que a democracia funcione um pouco melhor. Depois se verá.

Valor: Mas é possível vencer?

Lavagna: Não coloco as coisas nesses termos. Me preocupa que não haja concentração de poder, que sempre acaba mal. Não havia quem dissesse ao governo algumas coisas, e é isso que estamos fazendo. A sociedade está nos avaliando de modo positivo. Se basta isso para vencer a eleição, não sei.

Valor: Além do presidente, é possível vencer o aparato justicialista?

Lavagna: Bem, o exercício do poder, no Brasil, na Argentina ou nos EUA, oferece certas vantagens. Na Argentina, o peso do justicialismo é importante. Eu sou justicialista, e há setores do justicialismo que têm objeções a como caminha hoje o país. Estamos trabalhando com eles, com o Partido Radical, com o que foi o partido do presidente [Arturo] Frondizi, um desenvolvimentista da época de [Juscelino] Kubitschek. É um grupo que busca uma alternativa que não vá ao outro extremo. A Argentina se move sempre por extremos.

Valor: E sobre Chávez?

Lavagna: Primeiro é preciso diferenciar Chávez da Venezuela. É óbvio que não se pode senão dar boas-vindas à Venezuela, a uma economia como a da Venezuela no Mercosul. O problema é Chávez. Ele quer modificar a agenda do Mercosul e de uma maneira absurda. Veja qual foi a primeira proposta dele logo depois de ingressar no Mercosul: criar o Exército sul-americano. Não creio que haja um só argentino, brasileiro, uruguaio ou paraguaio que veja isso como prioridade. Então, cuidado. Ele tem uma personalidade muito expansiva, difícil de controlar. Cabe à Argentina e ao Brasil evitar que ele mude a nossa agenda, o que pode destruir um processo de integração que tem seus defeitos, mas que está dando resultados.

Valor: Mas Chávez compra títulos da dívida da Argentina?

Lavagna: Não vejo problema, desde que economia e política não se misturem. Mas parece que isso está acontecendo. No início nos o procuramos e demoramos para convencê-lo de que era um bom negócio. Agora eles nos procuram.

Valor: Uruguai e Paraguai estão insatisfeitos com o Mercosul. Eles têm razão?

Lavagna: Sim. Argentina e Brasil não prestaram a devida atenção aos sócios menores. Ainda assim, houve mudanças positivas no último ano e meio, que a Argentina propôs e que custou muito para que o Brasil aceitasse. Primeiro, o fundo estrutural de US$ 100 milhões para Uruguai e Paraguai. Não é muito dinheiro, mas um princípio de reconhecimento. E uma parte de esses fundos vai para a luta contra a febre aftosa, que não interessa só ao Paraguai, mas a nós também. Há problemas para usá-lo, mas se acertou o princípio dos fundos estruturais.

Segundo, o mecanismo de adaptação competitiva entre Argentina e Brasil, estendível ao resto do Mercosul, um instrumento importantíssimo que não existia. Se você tem situações de desequilíbrio e não tem instrumentos para manejá-las, vai criar uma crise.

Valor: O que o sr. acha do desejo do Uruguai de fazer um acordo comercial em separado com os EUA?

Lavagna: Não sou contra. Há formas de permitir isso, se houver vontade política. Uruguai é o país que menos elevou suas exportações dentro do Mercosul, o menos favorecido, e não acho impossível achar uma forma de admitir um tipo de acordo entre Uruguai e EUA.

Valor: Isso seria compatível com os acordos do Mercosul?

Lavagna: Sobre isso não se pode fazer teoria. Quando discutíamos o mecanismo de adaptação competitiva, por exemplo, alguns disseram que a União Européia nunca teve um instrumento desse tipo. Claro que não. A UE tem fundos estruturais de ? 80 bilhões por ano. Se você tem esse dinheiro para compensar zonas ou países que tenham desajustes, ótimo. Se não, precisa criar novos instrumentos. É o que o Mercosul não tinha feito.

Se não há uma forma de integrar mais ativamente o Uruguai, é preciso encontrar algum mecanismo para que ele permaneça no bloco e que permita ao mesmo tempo tirar algumas vantagens.

Quando o México assinou com o Nafta, deveria ter saído da Aladi (Associação Latino-Americana de Integração). Mas nos acertamos que para não saísse. Se fizemos isso para o México, por que não fazer para o Uruguai?

Valor: O presidente Kirchner parece preferir a reeleição de Lula no Brasil. O sr. tem algum candidato?

Lavagna: Não, de jeito nenhum. Não quero me intrometer na política interna de outro país.