Título: 'É preciso repensar valores do capitalismo'
Autor: Lamucci, Sergio
Fonte: Valor Econômico, 17/08/2006, Brasil, p. A6

O economista André Lara Resende está convencido de que é fundamental "repensar a matriz dos valores do moderno capitalismo de massa". "Acredito que este é o grande impasse de nosso tempo: a incompatibilidade entre o sistema mais eficiente na geração de riqueza e a valorização da vida pública e da cidadania, indispensáveis para dar sentido à riqueza material", disse Resende no discurso de agradecimento ao prêmio Economista do Ano, em cerimônia realizada na noite de terça-feira.

Ex-presidente do BNDES e um dos pais do Plano Real, Resende fugiu da análise tradicional das mazelas econômicas brasileiras, embora também tenha falado delas em seu pronunciamento. O seu foco principal foi outro. Ele disse já ter acreditado que, "resolvidas as questões macroeconômicas de fundo - o equilíbrio fiscal e a estabilidade monetária, superada a armadilha da inflação crônica - estariam automaticamente restabelecidas as condições para o crescimento sustentado".

Hoje, porém, sua visão é outra: "Constato que a superação da inflação crônica não é condição de suficiência para a retomada do crescimento, e também já não tenho certeza de que o mero crescimento seja condição para a superação do subdesenvolvimento."

Resende lembrou que o Brasil superou a inflação crônica e promoveu grandes avanços institucionais na política macroeconômica, "mas o crescimento não foi o esperado". "Não acho que seja exagero retórico afirmar que se encontra num estado deplorável", disse ele, ressalvando que mesmo assim houve "extraordinário progresso material".

O que espanta, segundo ele, é que esse progresso material não foi acompanhado por uma "percepção de melhora na qualidade de vida" - pelo contrário, como indicariam a crise da segurança, a superpopulação dos grandes centros urbanos e o descrédito da política.

Para explicar esses problemas, que não são exclusivamente brasileiros - México e Argentina também vivem situação semelhante -, Resende passou a analisar o moderno capitalismo de massa e sua incompatibilidade com a vida pública e a cidadania. Segundo ele, "o moderno capitalismo de massa revelou-se imbatível como sistema de produção de riqueza. Sua superioridade foi de tal forma esmagadora que não parece haver, hoje, alternativa para a organização da economia", disse. O problema é que o sistema não é capaz de resolver "de forma automática a questão das desigualdades e da exclusão social", o que dependeria "essencialmente da vida pública, da política e da cidadania".

A questão é que a desvalorização da política tem "raízes profundas" na própria modernidade, devido a características como a valorização do trabalho e da vida privada: "Se não existe alternativa à altura do capitalismo para a criação de riqueza, se este capitalismo é incapaz de sanar a questão da desigualdade, que depende essencialmente da valorização da dívida pública, e a desvalorização da política tem suas raízes justamente no desenvolvimento da mentalidade capitalista moderna, estamos diante de um desafio monumental." Nesse cenário, superar essa incompatibilidade é decisivo para superar o subdesenvolvimento e transformar os países em "sociedades mais democráticas e equânimes." O imperativo, então, "é repensar a matriz dos valores do moderno capitalismo de massa".

E como fazê-lo? "Isso deve começar pela reorganização da vida pública. Procurar compatibilizar o mundo inevitavelmente cada vez mais interligado e integrado com a valorização das comunidades locais. Deve-se tentar reaproximar os homens públicos de suas comunidades, reverter de forma drástica a influência da publicidade e do marketing na vida pública", enumera ele. "Infelizmente, não me parece uma agenda fácil, nem passível de ser implementada a curto prazo", reconheceu ele.

Avesso à imprensa, Resende recusou os pedidos de entrevista antes do discurso. "Eu sou um ex-economista, um economista aposentado", brincou ele, que mora na Inglaterra. No discurso, se disse "agradavelmente surpreso" com a "premiação extemporânea", concedida pela Ordem dos Economistas do Brasil. "Concluo que deve ser uma espécie de condecoração por antigüidade."

O economista falou um pouco sobre questões macroeconômicas brasileiras. Destacou que considera consolidada a estabilidade monetária. "Há razão para acreditar que os vestígios da desconfiança na moeda estão finalmente sendo superados", afirmou ele. Segundo Resende, "as três funções da moeda - meio de pagamento, unidade de conta e reserva de valor - que se perdem ao longo do processo inflacionário crônico, estão praticamente resgatadas".

Ele apontou avanços na condução das políticas fiscal e monetária, como a criação do Comitê de Política Monetária (Copom) e a adoção do câmbio flutuante e do sistema de metas inflacionárias. Mas há muito ainda o que avançar, segundo Resende. "Do lado das políticas monetária e cambial, é preciso assegurar a independência formal do BC, para que sua independência prática seja percebida como duradoura." Ele também insistiu na importância de se "progredir no processo de dar plena conversibilidade à moeda".

Resende frisou a necessidade de mudança de enfoque na questão fiscal, uma vez que o equilíbrio fiscal foi obtido por meio do aumento da carga tributária, que "chegou no limite do tolerável", por desestimular o investimento e o emprego e por se configurar como "um sério entrave para que o país reencontre o dinamismo perdido desde o início do processo de inflação crônica". Também atacou, além da estrutura tributária caótica, "um arcabouço regulatório barroco". "Como dois irmãos malévolos e inseparáveis, tributos e burocracia penalizam todos os aspectos da vida".