Título: Globalização e política monetária
Autor: Srour, Solange
Fonte: Valor Econômico, 17/08/2006, Opinião, p. A12

Os mais recentes estudos do FMI, do BIS e do Fed têm abordado os efeitos reducionistas da globalização sobre a inflação, seja através do aumento da competição entre produtos produzidos nacionalmente com os importados, seja através do aumento da produtividade da mão-de-obra através da maior transferência de tecnologia ou através dos incentivos à adoção de políticas mais responsáveis em vários países. Com a recente alta da inflação em diversas regiões, mais especificamente nos EUA, outras questões bastante relevantes estão sendo discutidas no momento. Há alguma relação entre o fenômeno da globalização e as escolhas feitas pelas autoridades monetárias? Será que a maior integração entre as economias muda o peso relativo entre a inflação e o nível de produto nas preferências da sociedade? O efeito da política monetária nestas duas variáveis é substancialmente diferente em um mundo onde há maior mobilidade entre bens e capitais?

Para responder as duas primeiras questões, devemos recorrer à literatura sobre economia internacional. É bem estabelecido que a abertura comercial permite aos países especializarem a produção e diversificarem o consumo. Economias com altos volumes de exportações e importações tendem a ter uma diversidade de produtos produzidos domesticamente muito menor do que a de produtos consumidos, assim como a composição da produção tende a ser bastante diferente da composição do consumo. Desta forma, a correlação entre a flutuação da produção e do consumo, perfeita para economias fechadas, torna-se bem menor para economias abertas. Além da abertura comercial, a abertura financeira, ou seja, a livre movimentação de capitais, permite que as economias suavizem o consumo intertemporalmente. A flexibilidade de entrada e saída de capitais torna menos custoso o financiamento externo nos períodos de escassez de poupança doméstica. Já nos casos de excesso de poupança doméstica, permite-se que a economia transfira parte do excesso do consumo presente para o futuro.

A relação entre a globalização e as escolhas feitas pelas autoridades monetárias depende exatamente dos efeitos da aberturas comercial e financeira nas preferências da sociedade quanto ao nível de produto e inflação. Em um interessante trabalho, Razin e Loungani ("Globalization and Equilibrium Inflation-Output Tradeoffs") demonstram que a globalização reduz o peso do hiato do produto na função de utilidade da sociedade vis-à-vis o peso da inflação. A abertura financeira, ao permitir que a sociedade tenha um consumo menos volátil ao longo do tempo, torna-a menos sensível às flutuações na produção. Já a abertura comercial leva à especialização da economia na produção e não no consumo, o que também gera um consumo menos correlacionado com a atividade econômica. A implicação destes dois processos é que as autoridades monetárias, como representantes da sociedade, acabam dando mais ênfase na redução da inflação do que na manutenção do nível de produção perto de seu potencial. Assim, a globalização favorece a adoção de políticas monetárias mais ortodoxas, já que os bancos centrais são menos sensíveis às flutuações do nível de atividade.

-------------------------------------------------------------------------------- É muito importante para a efetividade da política, em um mundo altamente integrado, que o fluxo cambial seja flexível --------------------------------------------------------------------------------

A resposta da questão sobre os efeitos da globalização na adoção da política monetária está no formato da curva de Phillips, que expressa o trade-off entre inflação e desemprego. De acordo com o modelo do FMI, os países mais expostos à globalização requerem uma perda maior de produto, a fim de reduzir a inflação, em comparação com a perda que tinham há duas décadas atrás. A globalização tornou a curva de Phillips menos inclinada, já que as condições de oferta da economia passaram a ser dependentes mais das condições do mercado de trabalho global do que das condições domésticas. Uma curva de Phillips praticamente horizontal é consistente com os efeitos deflacionistas de inserção da China e Índia na economia mundial. Cabe ressaltarmos que esta discussão está hoje presente dentro do FOMC. A presidente do Federal Reserve de São Francisco, Janet Yellen, recentemente declarou que "uma curva de Phillips menos inclinada pode complicar o trabalho do Fed (...) pois a redução da sensibilidade da inflação ao hiato do produto aumenta o custo de restaurar a estabilidade de preços quando a inflação sobe".

Ainda que a globalização torne os custos de desinflacionar a economia maior, a habilidade das autoridades monetárias em influenciar a demanda agregada e, por conseqüência, a inflação, não é totalmente perdida. É de suma importância para a efetividade da política em um mundo altamente integrado que a política cambial seja flexível. Se por exemplo o Fed operasse sobre um regime de câmbio fixo, não teria meios de controlar a demanda agregada. Quando ocorresse a necessidade de subir juros, a entrada de capitais e, conseqüentemente, a maior pressão para valorizar o câmbio, acabariam levando as autoridades monetárias a defender a moeda, anulando o efeito da subida de juros. Com um regime cambial flexível, a política monetária americana impacta a demanda agregada por dois canais, tanto através das taxas de juros domésticas quanto através do valor do dólar. A repercussão dos juros para o dólar ocorre na extensão em que os fluxos de capitais são sensíveis ao diferencial dos juros, que é tanto maior quanto maior for a integração entre os mercados de capitais.

O debate sobre os efeitos da globalização na inflação está longe de se esgotar, principalmente quando o mundo começa a conviver com uma inflação mais alta, ainda que historicamente baixa. Se de um lado a globalização torna as autoridades monetárias mais sensíveis à inflação do que aos desvios da atividade, de outro tornam o custo de desinflacionar maior. A maior integração entre economias aumenta trade-offs com os quais os bancos centrais se defrontam, tornando decisões de política monetária mais complexas e imprevisíveis. Com atenções voltadas para como o Fed responderá nos próximos meses ao aumento do risco inflacionário e à desaceleração da atividade, e de como o Banco Central japonês conduzirá o aperto monetário após anos com juros zero, as questões abordadas tendem a ganhar mais importância.

Solange Srour é economista-chefe da Mellon Global Investments Brasil.