Título: Recessão nos EUA pode ser bem-vinda
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Fonte: Valor Econômico, 21/08/2006, Internacional, p. A11
Em 1871, os EUA acrescentaram cerca de 9,5 mil quilômetros de extensão a suas ferrovias, num empreendimento que ocupou um décimo de sua força de trabalho industrial. Mas em 1875 a implantação de novos ramais ferroviários tinha caído mais de 33%, e essa atividade empregava menos de 3% dos trabalhadores americanos.
Segundo Brad DeLong, um historiador econômico da Universidade da Califórnia em Berkeley, os violentos altos e baixos no setor ferroviário ajudam a explicar a popularidade, antes da Grande Depressão e de John Maynard Keynes, de uma visão fatalista sobre o ciclo de negócios. Recessões, por mais desagradáveis, eram catárticas, e portanto necessárias. Liberavam capital e trabalho de atividades não lucrativas (como a implantação de um quilômetro adicional de trilhos) como um prelúdio essencial à sua realocação em outra atividade. "As depressões não são simplesmente males que poderíamos tentar suprimir", escreveu Joseph Schumpeter. Elas representam "algo que tem de ser feito".
À época de Schumpeter, esse fatalismo era compartilhado por muitos no Fed (Federal Reserve, o BC dos EUA). Mas hoje o Fed entra rapidamente em ação para suprimir recessões, as quais, avalia o banco, devem-se principalmente a uma escassez de demanda, e não a um excesso de trilhos. Para o Fed, as recessões são boas para uma coisa, e apenas uma coisa: conter a inflação.
Infelizmente, essa tarefa é agora urgente. Segundo números publicados na semana passada, o núcleo dos preços ao consumidor subiu 2,7% no ano até julho - uma rapidez que causa desconforto. Em tese, a cura para essa inflação poderia ser indolor. Se o comprometimento do Fed para com a estabilidade de preços for crível, e se as pessoas mirarem o futuro, e não o passado, ao pactuar seus salários e definir seus preços, elas corresponderão às promessas do Fed. Na prática, infelizmente, a inflação é marcada por forte inércia. Por essa razão, reduzi-la geralmente exige tanto uma desaceleração na economia como uma redução nas expectativas inflacionárias.
Como pagãos afiando suas facas, os economistas debatem a dimensão dessa "taxa de sacrifício": o número de pessoas que precisam perder seus empregos para aplacar os deuses da estabilidade de preços. Alguns modelos, inclusive um dos muitos que balizam as deliberações do Fed, estima essa taxa em patamar elevado, de até 4,25%, o que significa que o desemprego precisa crescer um ponto percentual (ou 1,5 milhão de pessoas) durante 4,25 anos para reduzir a inflação em 1 ponto percentual. Mas outros economistas, menos sanguinários, sugerem que a taxa seja mais próxima de 2% ou 2,5%.
Taxas como essas implicam que, pela primeira vez em anos, os economistas americanos, que monitoram a inflação e o desemprego em seu país, estão tão preocupados com o futuro quanto os economistas internacionais, mais focados nos desequilíbrios do país com o exterior. Os internationalistas há muito tempo temem que o futuro possa trazer uma recessão, caso os estrangeiros abandonarem abruptamente o dólar.
A perspectiva de um desaquecimento econômico mais convencional - engendrado não por bancos centrais estrangeiros, mas pelos próprios americanos - sugere que o carro e os bois pertencem a universos distintos. Uma recessão poderia produzir uma reversão do déficit em conta corrente, e não o contrário. As recessões foram, afinal de contas, parte integrante da reversão na conta corrente portuguesa, que começou em 1982; britânica a partir de 1989 e espanhola desde 1991.
Também em princípio, déficits em conta corrente podem ser zerados sem declínio na produção. As compras domésticas brutas americanas de produtos domésticos e estrangeiros totalizam atualmente cerca de 106% do Produto Interno Bruto (PIB). Em outras palavras, existe demanda doméstica mais que suficiente para comprar toda a produção americana. Em princípio, essas compras poderiam cair seis pontos percentuais do PIB, eliminando o déficit, sem que qualquer pessoa nos EUA precisasse perder seu emprego. Os americanos não sofreriam uma recessão. Mas isso seria sentido como uma recessão: cada homem, mulher e criança teria de reduzir seus gastos em US$ 2,6 mil por ano.
Sem aplicar tarifas às importações, porém, não é possível conter as compras de produtos estrangeiros, pelos consumidores, sem frear suas compras de tudo o mais também. Quando a demanda interna cai, ela tende a cair indistintamente para todas as mercadorias. Em alguns modelos, como o proposto por Maurice Obstfeld, de Berkeley, e Kenneth Rogoff, da Universidade Harvard, o preço dos bens não comercializáveis (internacionalmente) cai em qualquer volume necessário para esvaziar as prateleiras e manter todo mundo trabalhando, produzindo uma quantidade não menor de bens comercializáveis e não-comercializáveis.
Na realidade, porém, é improvável que o déficit americano seja zerado sem que ocorra uma mudança substancial em sua estrutura industrial. Apenas cerca de 25% do que o país hoje produz pode ser vendido no exterior. Andrew Tilton, do Goldman Sachs, calculou que para ampliar intensamente as exportações e estreitar seu déficit para 2,5% do PIB em torno de 2010, os EUA teriam de ampliar sua capacidade industrial em torno de 17%. Mas até este ano, foram os imóveis, um bem não comercializável por excelência, que atraíram trabalho e capital extras. Em 2005, a participação de operários da construção civil nas folhas de pagamento de empregados foi a mais alta em 50 anos, e o investimento em moradias respondeu pela maior parcela do PIB desde 1951. Schumpeter certamente chamaria isso de "desajuste".
Poderia uma recessão fazer, para o mercado habitacional, o que fez para o setor ferroviário em fins do Século XIX? O desaquecimento econômico anterior foi acompanhado por substancial reestruturação, de acordo com um amplamente citado estudo publicado por Erica Groshen e Simon Potter, do Fed de Nova York. Os trabalhadores que perderam seus empregos na recessão de 2001 não voltaram ao mesmo setor durante a recuperação. Ao contrário, aqueles que não foram totalmente expulsos da força de trabalho migraram para novos setores. As companhias, diziam os autores, interpretaram a recessão "não como um evento punitivo, mas como uma oportunidade (ou mesmo um mandato) para reorganizar a produção permanentemente, encerrar operações menos eficientes e demitir pessoal". Schumpeter não poderia ter se expressado em termos mais apropriados.
Uma recessão não é inevitável. Mas se um desaquecimento econômico em 2007 reduzir a inflação, estreitar o déficit comercial e abrir caminho para uma revitalização do setor industrial, o ano irá revelar-se um período de escassez surpreendentemente frutífero. (Tradução de Sergio Blum)