Título: Câmara dos Deputados: esta é mesmo a pior legislatura?
Autor: Maluf, Rui T.
Fonte: Valor Econômico, 21/08/2006, Opinião, p. A12

A partir do escândalo do mensalão e consolidando-se com recentes denúncias da Operação Sanguessuga desencadeada pela Polícia Federal, a quase finda 52ª legislatura da Câmara dos Deputados (2003-2007) passou a ser chamada de a pior legislatura de todos os tempos republicanos, ou ao menos dentre as que foram eleitas após a redemocratização do país, na opinião de analistas experientes, incluindo a de alguns de seus parlamentares em posições estratégicas.

Por sua vez, a maioria da opinião pública, com base em pesquisas do Instituto Datafolha, considerou a legislatura regular desde o seu início até junho de 2005, quando já passara da metade, e a partir daí, com o desenrolar do escândalo, passou a avaliá-la freqüentemente com os conceitos de ruim e péssimo. Há que se considerar, todavia, que o conceito regular pode ser uma forma disfarçada do entrevistado não se comprometer com um extremo, pois não teria opinião formada a respeito do assunto e/ou careceria de informação suficiente, o que não me parece improvável. Seja como for, penso que esta legislatura está na contramão do que se pode pensar do que venha a ser dignificante para qualquer observador minimamente atento à política dos últimos 20 anos e defensor de instituições públicas representativas com credibilidade popular. Ainda assim, tal avaliação é de ordem ética e moral e carece de indicadores consistentes para mensurá-la, cuja elaboração é tarefa a ser feita e institucionalizada. Destarte, problematizo sobre o assunto com a seguinte questão: será que a avaliação de que esta Câmara é a pior se deve ao maior número de acusados e processados do que nas anteriores? Se assim é, não parece demais questionar se isto se deve ao fato de nas legislaturas anteriores não ter vindo à tona acusações por acobertamento, falta de adequada apuração da imprensa e Ministério Público, ou até por pura casualidade. E mais: será que o grande número de processos desta legislatura não seria um indicador positivo? Sim, a pergunta procede, pois mesmo com a absolvição de vários parlamentares, a Câmara dos Deputados teria tido a capacidade de expor-se institucionalmente à opinião pública, julgar os processos em grande número e, assim, ter permitido o detalhado acompanhamento da opinião pública, a quem cabe a decisão final de reconduzi-los ou não a um novo mandato. E se julgamento não é sentença condenatória antecipada, há de se admitir por hipótese que eles poderiam ser realmente inocentes das acusações. Portanto, antes da construção de um ou mais indicadores éticos, é preciso escolher uma resposta para a pergunta anterior.

Para se efetuar análise mais cuidadosa, vale recordar que quase todos deputados envolvidos em acusações têm pelo menos dois mandatos e, portanto, integravam as Câmaras anteriores, as quais não foram avaliadas em bases tão críticas como a atual, na opinião popular e dos analistas. Pergunto: como é possível que não existissem atos antiéticos se as apurações da CPMI das Sanguessugas revelaram que o esquema já existia anteriormente, embora não houvessem denúncias formalizadas?

-------------------------------------------------------------------------------- Avaliação do Legislativo exige construção de estatísticas sólidas e regulares para suas diversas áreas de atuação --------------------------------------------------------------------------------

Bem, se ficarmos com a avaliação popular para efeito de análise, considerando-se os dados do Datafolha, é preciso primeiramente ter presente que a avaliação não é realizada a partir de pergunta específica sobre questões de ordem ético-moral, mas sim do desempenho geral. Tem-se, portanto, o seguinte quadro: a opinião pública oscilou fortemente no auge do escândalo do mensalão (meados de 2005), ou seja, os itens ruim-péssimos foram os mais altos (48%) para declinarem ligeiramente em 2006, mas consistentemente (47% em abril e 42% em junho). Caso a tendência positiva se mantenha, o que acredito que seja difícil, haja vista a identificação dos nomes dos denunciados na CPMI das Sanguessugas, é pouco provável que fique abaixo dos 35%.

Quanto à construção de indicadores de comportamento ético-moral da instituição começo pelo que já vêm sendo usado generalizadamente e qualquer tratamento crítico, a saber: número de denúncias formuladas. De saída há várias questões de natureza metodológica para se trazer a consideração: tratam-se de denúncias feitas por intermédio da imprensa, Ministério Público, Polícia Federal, por algum parlamentar em termos apenas orais, ou formalizada em documento registrado em órgão competente para sua apuração? Cada um destes critérios tem suas vantagens e desvantagens, mas de saída afirmo que é contraproducente incluir todas denúncias sem discriminação, porque pode gerar enormes distorções, como a contagem repetida de um mesmo caso. Em relação às que são feitas pela imprensa, a vantagem é de que por meio desta se obtém maior acompanhamento da opinião pública, mas sua limitação básica é a de que quase sempre reproduz trabalho feito por órgãos públicos, ou declaração de parlamentar, e não de seu trabalho investigativo. Tal limitação poderia ser contornada pelo registro de quando esta foi feita pela primeira vez e a data da publicação. Se o levantamento for feito com esclarecimento do critério empregado, quase todas têm seu valor explicativo. Mas, será necessário ainda maior cuidado no caso de se buscar maior precisão, mediante a formulação de um índice que nasceria, por exemplo, do cruzamento do indicador de denúncias formuladas por meio da imprensa com denúncias investigadas por comissão legislativa competente. Seja qual for o critério adotado, emergiria o problema da viabilidade para sua comparação com as legislaturas anteriores, pois as condições de levantamento dos dados podem ser frágeis.

Para aqueles que desejam fazer análise objetiva e de caráter comparativo que permita dispor de subsídios para o aprimoramento da vida parlamentar, parece-me urgente que os estudiosos do Legislativo e políticos em geral construam estatísticas sólidas, regulares e bem embasadas para as diferentes áreas de atuação e organização do Poder Legislativo, mediante sua disposição pública, como já vem sendo feito atualmente, mas de forma acanhada, no item Transparência do portal da Câmara.

Rui Tavares Maluf, é cientista político. Doutor pela USP, mestre em ciência política pela UNICAMP. Professor da Fundação Escola de Sociologia e Política e das Faculdades Campos Salles, e sócio-diretor da Processo e Decisão Consultoria Política e Assessoria Empresarial.