Título: A mestra dos vinhos caros e raros
Autor: Bianchi, Juliana
Fonte: Valor Econômico, 22/08/2006, EU & Investimentos, p. D6

Ela é uma das mulheres mais respeitadas no mundo do vinho, e sua opinião pode fazer a cotação de uma safra ou rótulo extrapolar as barreiras do imaginável. Segunda mulher na história a obter o título de Master of Wine, graduação máxima no universo do vinho, a inglesa Serena Sutcliffe começou sua carreira etílica em 1971. Exatos cinco anos antes de comemorar com um porre memorável o almejado certificado das mãos do também Master of Wine David Peppercorn, seu atual marido. Diretora do Departamento Internacional de Vinhos da Sotheby´s, - onde só em 2005, apresentou vendas superiores a US$ 29 milhões, valor 40% maior que no ano anterior graças a seu trabalho e credibilidade -, Serena esteve no Brasil no primeiro semestre para divulgar seu trabalho dentro da respeitada casa leiloeira a clientes potenciais e velhos conhecidos.

Aos 61 anos Serena lembra com carinho a época em que foi tradutora da Unesco no Egito - ela fala seis línguas -, e atuou como consultora independente para vinícolas, importadoras e companhias aéreas. Mas é mesmo com seu trabalho na Sotheby´s - onde está desde 1991, depois de postergar o convite por nove meses com medo de perder a autonomia -, que Serena se diz realizada. Hoje ela coordena uma equipe de 16 especialistas em Londres e Nova York. À frente do departamento ela pôde acompanhar de perto, em 1999, o martelo londrino bater três vezes na casa dos US$ 14,4 milhões, durante o histórico leilão The Millennium Wine Cellar Auction. Entretanto, é em Nova York que ela vê o tempo passar mais rápido - e de forma mais lucrativa. " É lá que estão as grandes fortunas do mundo, e onde vi as adegas mais impressionantes " , diz ela, que antes de cada um dos 12 leilões anuais da empresa costuma atender pessoalmente os maiores colecionadores do mundo.

Especialista em champanhe e vinhos da Borgonha e Bordeaux, sobre os quais já escreveu diversos livros - ela tem seis livros publicados -Serena Sutcliffe falou com exclusividade ao Valor.

Valor: Como os vinhos chegam à Sotheby´s? É preciso ir atrás das melhores oportunidades ou elas chegam naturalmente a sua sala?

Serena Sutcliffe: É uma combinação de fatores. Claro que as pessoas nos procuram, mas meu trabalho é saber quem elas são. Como estamos no mercado há muito tempo, acaba-se conhecendo as pessoas que têm conexões com esse universo. É como o mercado de arte. Então, junto essas informações com a de pessoas que querem mudar o estilo da adega - por exemplo, tem muitos Bordeaux e quer espaço para mais italianos -, precisam vender um pouco para acomodar melhor as garrafas que ficaram, precisam de dinheiro, estão de mudança ou morreram. Nós brincamos que existem três grandes causas para as pessoas abrirem mão de seus bens: morte, dívida ou divórcio. (Em inglês, os 3 " d " s: death, debt and divorce.)

Valor: Hoje em dia, para se ter uma grande adega é preciso recorrer aos leilões para comprar vinhos raros. Mas pode-se dizer que comprar em leilões é 100% seguro?

Serena: Não posso falar por outras casas leiloeiras porque não sei como trabalham, quantas checagens fazem do vinhos e sua procedência, mas na Sotheby's somos muito cuidadosos com isso. Sempre vamos às adegas para verificar o acondicionamento e procedência do lote antes de aceitá-lo. Quando chegam, abrimos todas as caixas para garantir que não há outra coisa no fundo e que todas as garrafas estão igualmente bem conservadas e contêm o mesmo vinho.

Valor: Sob a sua tutela, a Sotheby´s já bateu alguns recordes de preço. Quais foram os leilões mais marcantes?

Serena: No ano passado vendemos um lote com 12 garrafas de Romanée Conti 1989, avaliado entre US$ 30 mil e US$ 50 mil, que foi arrematado por um investidor americano por US$ 85.187. Este foi um recorde para safra, nesse formato de compra.

Valor: Sabe-se que há no mercado diversas garrafas falsificadas de Bordeaux de safras históricas como 45, 47 e 61. Alguma dessas falsificações já chegou a suas mãos? Como é possível identificá-las?

Serena: É preciso ter muita experiência para identificar um vinho falso. É como acontece com quem trabalha há muito tempo com os mestres da pintura, a gente acaba sentindo que algo está errado. É claro que pequenos detalhes da safra e da região costumam servir de parâmetro, como a idade da garrafa, que deve corresponder ao período em que o vinho foi datado, bem como a cápsula, que tem de ser da mesma cor e tipo esperado. Várias vezes já tive de recusar vinhos assim. Há desde rótulos que são simples fotocópias dos originais aos que são deliberadamente tratados para parecerem velhos.

Valor: Quais os parâmetros para compor um lote e indicar seu valor?

Serena: Quando as caixas chegam fechadas, os lotes já estão naturalmente feitos. Mas às vezes, quando se trata de uma adega cujo dono costuma beber seus vinhos e as caixas estão incompletas, é possível fazer mixes interessantes. Mas sempre com vinhos de uma mesma adega, nunca misturamos. As estimativas de preço são baseadas no mercado, nos valores atingidos em leilões anteriores. Geralmente o preço final fica muito próximo do estimado. Só mesmo quando se tem dois clientes extremamente interessados naquele lote é que o preço inflaciona. Provavelmente são compradores de lugares ou países onde não há a menor possibilidade de se ter acesso a esses vinhos de outra forma.

Valor: A sra. viaja quase 70% do ano. Qual o principal objetivo, visitar adegas ou produtores?

Serena: Adegas são as mais visitadas, pois é preciso saber o estado de conservação de cada lote que colocamos a venda. Mas também visito muitas vinícolas, pois é preciso tirar suas próprias conclusões sobre o que está sendo produzido hoje e que em alguns anos poderá ser comercializado por nós. Não compramos ou vendemos vinhos " en premier " , mas se no futuro queremos comercializar vinhos como Petrus ou Lafite de uma safra excepcional como foi a de 2005 em Bordeaux, é importante conhecê-lo desde seu nascimento.

Valor: Seus clientes sabem o que estão comprando ou é apenas para impressionar?

Serena: Alguns realmente começam suas coleções para impressionar, para fazer parte de um grupo bacana. É uma compra aspiracional. Aos poucos eles vão bebendo mais e acabam apurando o paladar. Mas isso é diferente entre os asiáticos, pois ter um vinho top e poder servi-lo a seus convidados é uma questão cultural, de respeito. Eles só compram os top porque acreditam que se servirem algo menor o convidado poderá se sentir ofendido. É claro que existem muitas coisas boas além dos Petrus e dos Margaux, mas eles precisam servir aqueles que são reconhecidos.

Valor: A sra. atende mais clientes privados ou empresas?

Serena: Atendemos alguns restaurantes em Nova York, mas empresas ou mesmo bancos são compradores raros. Os compradores privados ainda são a grande maioria.

Valor: É verdade que 10% de seus clientes são brasileiros?

Serena: Isso varia em função do leilão. Os brasileiros têm muito interesse nos bons Bordeaux tintos, em especial os Petrus, então a porcentagem de brasileiros aumenta quando temos bons lotes desses vinhos à disposição.

Valor: Ter um comprador asiático presente ao leilão é garantia de que os preços atingirão valores estratosféricos?

-------------------------------------------------------------------------------- "Existem três causas para as pessoas abrirem mão de seus bens: morte, dívida ou divórcio. Meu trabalho é saber quem elas são" --------------------------------------------------------------------------------

Serena: Em alguns leilões específicos pode se dizer que sim, mas o interesse dos japoneses e chineses é um pouco limitado. Eles são loucos pelos Petrus, pelos Romanées-Conti, coisas que são o top do top. No momento, o mercado de vinho em geral está muito aquecido, então os top tendem a ir a valores nunca antes atingidos de qualquer forma. As pessoas estão excitadas com o lançamento da safra de 2005 em Bordeaux, e isso afeta todo o mercado. Mas depois disso, no fim de maio, as coisas devem voltar ao normal. Quando os principais chateaux de Bordeaux (45 a 50 chateaux, no máximo) lançarem seus preços ao mercado os preços de todas as outras safras devem se elevar como reflexo.

Valor: É possível participar de um leilão da Sotheby´s de três formas: ao vivo, por telefone ou enviando uma proposta por fax, dias antes. Qual delas é mais comum?

Serena: Estar na sala de leilão durante o evento é fantástico porque você pode mudar de idéia a qualquer momento, mas os compradores importantes costumam mesmo ficar no telefone com um de nossos 50 atendentes. Dependendo do leilão aumentamos esse número, mas não podemos ter 300 pessoas no telefone, por isso centenas de ofertas acabam nos chegando por fax ou e-mail antes dos leilões.

Valor: A produção de champanhe hoje está avaliada em 300 garrafas ao ano, volume muito próximo à capacidade produtiva da região. O que poderá acontecer nesse mercado já que o consumo não pára de crescer?

Serena: Não acredito que a área de champanhe será ampliada, pois o terroir em volta é muito diferente da região limite e isso influenciaria na qualidade da produção. Champanhe é caro porque é um vinho difícil de se fazer, que leva muito tempo, mas ainda assim as margens de lucro são bem altas. Talvez o preço das "cuvées de prestige" fique realmente muito mais alto com a procura, mas é preciso lembrar que ainda existem centenas de pequenos produtores e cooperativas desconhecidos que fazem vinhos de boa qualidade a preço razoável.

Valor: Surpreende a sra. que ainda existam tão poucas mulheres no mundo do vinho?

Serena: Realmente não temos muitas mulheres na área de compra ou negócios ligados ao vinho, onde estou. Meu universo é mesmo muito masculino, com pelo menos 95% de homens. Mas nunca me senti desconfortável com isso porque acho que sempre levei minha vida como um homem. Por outro lado, já temos muitas mulheres jornalistas de vinho, o que eu acho que é uma profissão que lhes cai muito bem porque podem trabalhar de casa.

Valor: Um vinho barato pode ser bom? Qual o mínimo que se pode esperar pagar por algo de qualidade?

Serena: Não sou, de forma alguma, uma " wine snob " . Acho sim que é possível ter bons vinhos de US$ 25 para se tomar em casa, como alguns argentinos ou um tradicional Beaujolais. Mas é claro que muitas vezes eu também bebo vinhos fantásticos que me são ofertados em jantares.

Valor: Em que vinhos a sra. investiria e quais tomaria agora mesmo?

Serena: É difícil lembrar porque tenho mais de 600 vinhos catalogados, com anotações de degustações. É dali que tiro as informações para os catálogo dos leilões. Mas sem dúvida agora eu compraria um Bordeaux 95, um 96 e um 98 tanto para guardar quanto para tomar, porque o preço deve se elevar em breve. Acho que o 95 está quase pronto para beber: jovem, mas maduro e cheio de frutas, mas depende do gosto.

Valor: Sei que seu emprego depende de pessoas que gostam de guardar vinhos mais do que beber. Mas a sra. não acha que essa prática deveria ser inversa?

Serena: Claro que o grande objetivo de ter uma adega é poder ter sempre a mão um bom vinho para beber. Todos os colecionadores que eu conheço gostam de beber e se divertem muito com isso. Nesses 15 anos de profissão apenas uma vez encontrei um colecionador da Califórnia que não bebia vinho algum. Ele era muito cuidadoso com seus vinhos mas realmente só estava investindo. Mas foi um único caso em anos. O problema é que um colecionador, seja ele de vinho ou de quadros, vicia facilmente em ter seu objeto de prazer e acaba comprando muito mais do que precisa ou tem espaço para guardar. Até que um dia se dá conta de que mesmo se viver 100 anos não conseguirá tomar tudo, então pensa, " Meu Deus, eu preciso vender parte disso " , e nos procura.

Valor: Como seria uma cena perfeita na sua vida?

Serena: Ler um livro de poesias, durante um pôr do sol na Grécia, ouvindo música clássica. Essas são minhas paixões além do vinho.

Valor: E que vinho acompanharia uma cena dessas?

Serena: Tenho um gosto bem variado, mas se tivesse que escolher um vinho para tomar o resto da vida, provavelmente, seria champanhe. Ele tem um efeito psicológico que me deixa pra cima, feliz. Mas também adoro os Bordeaux , os Borgonhas, os italianos e alguns vinhos espanhóis fantásticos.

Valor: Já provou algum vinho brasileiro?

Serena: É interessante isso, já vim três vezes ao Brasil, mas sempre para falar de vinhos franceses, então nunca tive oportunidade de conhecer. E no exterior é muito difícil de se achar.

Valor: Há alguma região ou vinho que, na sua opinião, é erroneamente menosprezada pelo público?

Serena: Os top Rieslings da Alemanha não costumam ter muito apelo no mundo todo, mas sem dúvida estão entre os melhores. É uma pena que, a não ser os próprios alemães e os japoneses, muitas pessoas não provem essa categoria de vinho porque deixam de descobrir o quão brilhante e fino o Riesling pode ser.