Título: A segunda geração de regras fiscais
Autor: Oliveira , Ribamar
Fonte: Valor Econômico, 26/04/2012, Brasil, p. A2
A atual crise da economia mundial e a persistente incerteza sobre o futuro está estimulando o surgimento de uma "segunda geração de regras fiscais", de acordo com constatação feita pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), em seu monitor fiscal deste mês, divulgado na semana passada. A essência da nova geração é que as metas fiscais passam a ser mais flexíveis, estabelecidas de forma a se ajustar aos ciclos econômicos e a flutuações de preços das commodities, mas exigem dos governos um maior comprometimento de que elas serão efetivamente obtidas sem trapaças fiscais.
A ideia, como deixa claro o texto do FMI, é a de que as políticas fiscais devem combinar o objetivo de sustentabilidade de médio e longo prazo com a flexibilidade de acomodar o ciclo econômico, por meios de metas orçamentárias ciclicamente ajustadas.
Isso significa dizer que um governo pode obter menores resultados fiscais em anos de crise econômica, desde que mantenha o compromisso de compensar essas frustrações em anos de melhor desempenho econômico e, ao mesmo tempo, de alcançar as metas de médio e longo prazo necessárias para a sustentabilidade de suas dívidas.
O FMI cita vários países europeus que estão fazendo esforços consideráveis para adotar novas regras fiscais para sair da atual situação de elevado endividamento, entre eles a Itália, a Espanha e Portugal. No caso da Itália, o texto chama a atenção para a proposta de adoção do equilíbrio orçamentário estrutural, que está sendo discutida no Parlamento daquele país, com chances de sucesso.
A "primeira geração" de regras foi aquela em que as metas fiscais eram estabelecidas em percentuais do Produto Interno Bruto (PIB), sejam em termos de resultados nominais ou primários, sem levar em consideração as flutuações do produto, as flutuações dos preços das commodities sobre as receitas dos governos ou a qualidade das medidas que eram adotadas pelas administrações públicas para alcançá-las. A maioria dos países, principalmente os emergentes, ainda adota essas regras, que durante um longo tempo foram recomendadas pelos programas de ajuste da economia monitorados pelo próprio FMI.
Alguns poucos países, como a Alemanha e a Suíça, já adotavam modelos diferentes, em que os ciclos econômicos eram considerados. O Reino Unido trabalhou no passado com o resultado fiscal estrutural e, mais recentemente, voltou a adotar essa política.
Para o entendimento das diferenças entre a "primeira" e a "segunda geração" de regras é importante observar que a meta fiscal rígida (ou seja, aquela que não é ajustada ao ciclo econômico) pressupõe que a receita a ser obtida pelos governos quando a economia de um país está crescendo abaixo de seu potencial, ou mesmo quando ela está em recessão, é maior do que em situações de forte expansão econômica. Isto decorre do hiato do produto (a diferença entre o PIB corrente e o potencial) e da elasticidade da receita em relação ao PIB. Dito de uma forma mais direta, a questão parece uma obviedade: é mais difícil cumprir uma meta fiscal rígida quando a economia vai mal, pois a receita tende a cair mais do que o PIB nesses momentos.
Para contornar as dificuldades decorrentes da meta rígida, vários governos, inclusive o brasileiro, adotam práticas variadas de superestimação e antecipação de receitas, adiamento de despesas para o exercício seguinte, e a chamada "contabilidade criativa", com o objetivo de alcançar, dessa forma, os resultados fixados. Essas práticas terminam por comprometer a credibilidade das políticas fiscais adotadas e a impedir que os seus efeitos sobre a atividade econômica possam ser devidamente mensurados.
No caso do Brasil, a área acadêmica e alguns analistas independentes começaram a discutir a adoção do chamado resultado estrutural, como referência para as metas fiscais. Chega-se a esse resultado estrutural expurgando das estatísticas todas as receitas não recorrentes, os artifícios fiscais utilizados para obter as metas e a "contabilidade criativa", além de expurgar os efeitos cíclicos da economia e aqueles decorrentes das flutuações dos preços das commodities (particularmente o do petróleo) nas receitas governamentais. Portanto, o resultado fiscal estrutural é aquele efetivo, que não dependente das circunstâncias.
Trabalhando com o resultado fiscal estrutural do Brasil no período de 1997 a 2010, um recente estudo feito por economistas do Instituto de Pesquisa Aplicada (Ipea) mostrou que a política fiscal brasileira apresentou dois movimentos gerais. Do fim de 1998 ao primeiro trimestre de 2004, a fase foi contracionista. A fase seguinte, iniciada em 2004 e que vai até 2010, é expansionista, caracterizada por reduções graduais no superávit primário estrutural das administrações públicas.
Dada a complexidade das metodologias de ajuste ao ciclo, o FMI ressalta que as novas regras são difíceis de serem entendidas pelo público e também de serem monitoradas. Alguns países chegaram a criar conselhos fiscais independentes de acompanhamento da execução das políticas fiscais. Para ganhar credibilidade, o FMI adverte que essa "segunda geração de regras fiscais" precisa de maior transparência por parte dos governos e de uma melhoria substancial da comunicação com a sociedade.
Ribamar Oliveira é repórter especial e escreve às quintas-feiras