Título: Cristina está só
Autor: Vaz, Viviane
Fonte: Correio Braziliense, 28/10/2010, Mundo, p. 30

Ex-presidente Néstor Kirchner morre do coração, aos 60 anos, deixa a sucessora viúva e antecipa a discussão sucessória

Com passadas tristes, a presidenta Cristina Kirchner entrará hoje no Salão dos Passos Perdidos, no Congresso Nacional argentino, para prestar uma última homenagem ao marido e antecessor. A viúva, os argentinos e o mundo foram surpreendidos na manhã de ontem pela morte do ex-presidente Néstor Kirchner, vítima de um infarte fulminante aos 60 anos. Ele chegou a ser levado a um hospital em El Calafate, no sul do país, onde o casal descansava, mas não foi possível reanimá-lo. Em 12 de setembro, Néstor tinha passado por uma angioplastia (cirurgia para desobstruir a artéria coronária), e acreditava-se que ele se recuperava bem. Em fevereiro, o ex-presidente tinha sido operado com urgência de um problema na artéria carótida direita, e na ocasião os médicos avaliaram a operação como bem-sucedida.

Na residência do casal Kirchner, na província sulina de Santa Cruz, houve ontem uma despedida exclusiva para familiares e amigos. O padre Carlos Alvarez, que esteve ao lado de Cristina, afirmou que a presidenta demonstrou muita força e valentia, e lhe disse que seguirá lutando.

A notícia da morte de Kirchner ensombreceu o aniversário do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que ontem completou 65 anos. Em cerimônia no Porto de Itajaí (SC), Lula decretou luto por três dias, inclusive porque o ex-presidente argentino ocupava a secretaria-geral da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), pela qual ambos se empenharam. Sempre tive em Néstor Kirchner um grande aliado e um fraternal amigo. Foram notáveis o seu papel na reconstrução econômica, social e política de seu país e seu empenho na luta comum pela integração sul-americana, disse Lula por meio de nota oficial. Ele é esperado hoje em Buenos Aires, para os funerais. No Rio de Janeiro, o chanceler Celso Amorim se disse consternado e chocado. Foi com grande pesar que recebi a notícia, lamentou Amorim, que destacou a contribuição do argentino para o avanço do Mercosul e da Unasul.

Em Buenos Aires, as ruas registraram pouco movimento na maior parte do dia. O país tinha se preparado para um feriado especial, quando todos esperam em casa a visita dos funcionários do censo. Por lei, fica proibida a abertura de estabelecimentos comerciais e culturais. Nem mesmo os postos de gasolina funcionam. Os hospitais e os sistemas de transporte trabalham com pessoal reduzido. Apenas as bancas de jornal costumam abrir, disse ao Correio o economista Agustín Trombetta. A notícia da morte de Néstor levou alguns grupos a homenagearem o presidente em avenidas centrais da capital.

Vazio de poder Ainda em meio ao baque, os argentinos começavam a discutir perspectivas para o futuro político do país. Carlos Escudé, diretor do Centro de Estudos Internacionais da Universidade Cema, em Buenos Aires, considera que Néstor foi injustamente julgado por seus contemporâneos. Foi o homem a quem devemos a saída da crise de 2001 e 2002, afirma Escudé. O analista internacional Pablo Mera também destacou que o ex-presidente foi protagonista central da política argentina durante a última década e conseguiu dar rumo a uma Argentina em crise e desorientada. Por outro lado, o professor de política sul-americana da Universidade Católica, Eugenio Kvaternik, indica que Néstor e Cristina converteram a Argentina no país com a segunda taxa mais alta de inflação do mundo.

Os analistas concordam que Néstor era o principal precandidato do Partido Justicialista para disputar as próximas eleições presidenciais, e que sua morte deixa um vazio de poder que deverá ser fortemente disputado tanto por setores governistas quanto pela oposição. O coquetel de menos poder que terá o governo sem Kirchner, mesclado com uma confrontação aguda, conduz sem dúvida a um cenário de deterioração institucional, teme Kvaternik, que menciona até uma renúncia presidencial antecipada. Já Mera descarta uma situação de desgoverno, pois considera que Cristina, embora aos olhos da opinião pública estivesse sempre à sombra do marido, possui longa trajetória política própria. A presidenta tem um ano difícil pela frente, com a árdua tarefa de demonstrar de forma solitária sua verdadeira natureza na hora de governar, sem sombras nem fantasmas ao redor. As circunstâncias a obrigam a ser ela mesma, mais que nunca.

Peronismo fica sem a referência

Peço-lhes que ajudem Cristina, que é uma mulher de coragem disposta a transformar a pátria, disse o ex-presidente Néstor Kirchner em um de seus muitos discursos na Plaza de Mayo, em Buenos Aires. Talvez, se tivesse tido tempo de discursar antes de morrer, ele repetisse a frase e pedisse apoio para sua mulher. Apesar das brigas algumas anedóticas, como na ocasião em que, na residência de El Calafate, Cristina teria dito ao marido: A presidenta sou eu! Na vida a dois como na política, os dois sempre caminharam juntos desde que se casaram, em 1975. O ex-presidente deixa os filhos Máximo, 32 anos, e Florencia, 19.

Néstor Kirchner nasceu em 25 de fevereiro de 1950, em Río Gallegos, na Patagônia argentina. Foi durante os conturbados anos 1970, quando militavam na Juventude Peronista e estudavam direito na Universidade de La Plata, que Néstor e Cristina se tornaram o casal K. Advogado formado em 1976, ele chegou a prefeito de sua cidade natal (1987-1991) e a governador da província de Santa Cruz (1991-2003), antes de se tornar presidente sempre pelo Partido Justicialista (peronista). Em 2003, deixou de ser um político regional para tornar-se não apenas presidente, mas líder latino-americano e figura-chave de um peronismo desfigurado após o governo de Carlos Menem. Kirchner derrotou-o e recebeu o comando do país das mãos de Eduardo Duhalde outro cacique peronista , que renunciou antes de completar o mandato inconcluído de Fernando de la Rúa. Foram anos marcados pela crise econômica e pela instabilidade política.

Seu mandato na Casa Rosada, entre 2003 e 2007, caracterizou-se por uma tensa relação com o Fundo Monetário Internacional (FMI), mas também pelo crescimento da economia, pela redução da pobreza e do desemprego. Seu governo também ficará na história pela abertura dos arquivos da ditadura militar (1976-1983) e pelo julgamento de crimes contra os direitos humanos cometidos no período.

Néstor Kirchner exercia o cargo de secretário-geral da Unasul desde 4 de maio último, e também ocupava um cadeira de deputados, além de presidir o Partido Justicialista. Seu estilo de liderança, baseado na confrontação, permitiu-lhe impor algumas posturas fortes e conflituosas, que lhe geraram tanto admiradores quanto detratores, resume o analista de política internacional Pablo Mera. Com eleições presidenciais marcadas para outubro de 2011, seu nome aparecia como um dos favoritos para voltar ao cargo.