Título: Perseguir superávit primário já não basta, dizem analistas
Autor: Lamucci, Sergio
Fonte: Valor Econômico, 23/08/2006, Brasil, p. A3

O modelo de superávit primário baseado no aumento simultâneo de gastos e receitas se esgotou. Nos últimos anos, a economia obtida pelo governo para pagar juros foi fundamental para impedir a explosão da dívida pública, mas provocou graves problemas para a economia, como a forte elevação da carga tributária e a dramática redução do investimento.

Os especialistas em contas públicas consideram indispensável repensar o modelo o quanto antes, dando prioridade ao controle de despesas, de modo a aliviar o peso dos impostos e elevar os investimentos públicos. Sem isso, a própria meta de superávit primário do ano que vem, de 4,25% do Produto Interno Bruto (PIB), estará em risco, avaliam alguns analistas.

Depois da flutuação do câmbio em 1999, o foco da política fiscal se concentrou em impedir a escalada da relação entre a dívida líquida e o PIB para afastar os temores quanto à solvência do setor público. A estratégia foi gerar superávits primários (diferença entre receitas e despesas sem os gastos com juros) crescentes, que passaram de 0,01% do PIB em 1998 para 4,83% do PIB em 2005. Foi um esforço fiscal considerável e surpreendente, pois nos quatro primeiros anos do Real, o resultado fiscal havia sido muito fraco, como lembra o professor Márcio Garcia, da PUC-Rio.

O esforço fiscal demorou alguns anos para surtir efeito, mas em 2004 conseguiu reverter a trajetória de alta da relação dívida/PIB iniciada em 1994. Em dezembro de 2004, o indicador atingiu 51,7%, abaixo dos 57,2% de 2003.

O problema é o modo como foram obtidos os superávits - elevações simultâneas de gastos e receitas-, um mix que também parecia improvável em 1999, segundo Garcia. A carga tributária saltou de 29,7% do PIB em 1998 para algo como 38% do PIB, ao passo que, no período, as despesas do governo federal pularam de 16,1% do PIB para 19,1% do PIB, segundo estimativa da Rosenberg & Associados. "Em vez de cortar gastos, sobretudo os previdenciários, houve um aumento estúpido da carga tributária", diz ele. Além disso, o investimento caiu para níveis desprezíveis. Em 2005, o governo federal investiu apenas 0,5% do PIB. Para Garcia, essa combinação de impostos pesadíssimos e investimento irrisório compromete o potencial de crescimento do país.

Como parece impossível aumentar a carga tributária e o investimento público já foi comprimido demais, a saída para a política fiscal daqui para frente está no controle de gastos, diz Garcia. Em resumo, não basta mais olhar apenas a diferença entre receitas e despesas não financeiras. "Só o superávit primário não é suficiente na questão fiscal", diz Ilan Goldfajn, ex-diretor do Banco Central, ressaltando a importância que se começa a dar para a velocidade de expansão dos gastos.

A discussão deixou de se concentrar apenas no cumprimento ou não da meta de superávit primário, mas em como o esforço fiscal tem sido feito. A dúvida, segundo ele, é saber se há consenso na sociedade em relação à importância de controlar os gastos da mesma forma que já existe em relação à carga tributária.

O economista José Roberto Afonso destaca que a política fiscal não pode ser reduzida a um único indicador. "Não se deve jogar o resultado primário no lixo, mas a política não pode se limitar a ele." Para ele, é fundamental levar em conta também o resultado nominal, que inclui os gastos com juros. Afonso diz que não basta atacar a questão fiscal isoladamente. O problema é que não há consistência na política macroeconômica, afirma ele. "Não dá para mexer apenas no front fiscal, é necessário também mexer no monetário e no cambial ao mesmo tempo."

No front fiscal, Afonso considera que o primeiro passo é terminar reformas que estão incompletas, como a da Previdência. Além disso, seria importante aprovar limites para o endividamento da União e para a dívida em títulos do governo federal. "Hoje, o grosso do endividamento público no país (da União) não está sujeito a nenhum limite", diz Afonso.

O professor Carlos Eduardo Gonçalves, da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP, também avalia que é fundamental controlar as despesas, mas diz que o superávit primário ainda tem um papel importante a cumprir. Para ele, o mais indicado seria elevar o superávit para a casa de 5,5% a 6% do PIB, para acelerar a queda da relação dívida/PIB, hoje na casa de 51%. É um número ainda alto para países emergentes - a do Chile está em 15% e do México, em 31%. "Com uma redução mais rápida desse indicador o risco-Brasil cairia mais, os juros cairiam mais e melhorariam as perspectivas de crescimento", afirma ele.

Para os especialistas em contas públicas, conter o crescimento das despesas do governo é uma medida decisiva para que a meta fiscal de 2007 seja cumprida. Para a economista Débora Nogueira, da Rosenberg, "na ausência de medidas de contenção de gastos e reformas no primeiro ano do próximo governo, as contas públicas deverão entrar em um processo de profundo desgaste a partir de 2007".

O problema é que, neste ano, o governo contratou uma série de despesas permanentes, devido ao reajuste do salário mínimo, que impacta as contas da Previdência, e aos aumentos dos servidores.