Título: Delta tende a manter contratos se for considerada inidônea
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Fonte: Valor Econômico, 15/05/2012, Política, p. A9

O governo poderá abrir um campo vasto para batalhas jurídicas se decidir levar a ferro e fogo a determinação de extinguir todos os contratos que a União mantém com a Delta Construções, maior empreiteira do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A sinalização dada pelo Palácio do Planalto é que o governo estaria apenas aguardando a declaração de inidoneidade da Delta pela Controladoria-Geral da União (CGU), para que os contratos com a empresa fossem cancelados. Mas falta combinar com a empreiteira, agora assumida pela holding J&F, que controla a processadora de carne JBS. Se por um lado a decisão do governo poderá reforçar a imagem de intransigente com "malfeitos" conquistada pela presidente Dilma Rousseff, por outro o Executivo corre o risco de pagar indenizações milionárias à construtora, além de atrasar ainda mais a execução de obras estratégicas que já estão com o cronograma comprometido.

Assim que a Controladoria-Geral da União (CGU) declarar a inidoneidade da Delta Construções, planejam autoridades do Palácio do Planalto, o governo manterá a Delta à frente apenas de obras já próximas de sua conclusão. As demais serão interrompidas. Os segundos colocados das licitações vencidas pela Delta serão chamados pelo governo e, caso não queiram assumir os empreendimentos, haverá novas licitações. A intenção do governo é que as obras não fiquem paradas, mas o resultado pode ser exatamente o oposto.

Especialistas ouvidos pelo Valor afirmam que a declaração de inidoneidade - conforme previsto nas regras da Lei de Licitações (8.666/93) - impede que uma empresa realize contratos futuros com o governo por um prazo de dois anos. "É uma pena severa que reside apenas em contratos futuros", diz o advogado Robertson Emerenciano.

Sobre os contratos em andamento, caso em que a Delta está inserida, a questão é mais complexa porque a legislação não é clara a respeito do assunto. "A lei traz somente o impedimento de contratar [caso a empresa seja declarada inidônea]. Sobre os contratos vigentes, não há uma clareza", diz Emerenciano.

O entendimento da Justiça, segundo os advogados ouvidos, é que o impedimento só vale para os contratos futuros - os vigentes, portanto, permaneceriam em execução. Há posições contraditórias.

"Há quem defenda que, em caso de inidoneidade, todos os contratos da empresa sejam rescindidos, mas já há jurisprudência sobre esse tema que apontam uma decisão contrária", diz Márcio Reis, especialista em direito regulatório e administrativo do escritório Siqueira Castro Advogados. "Se o governo levar essa decisão adiante, a probabilidade de questionamento jurídico é enorme", avalia Reis.

Mesmo que o governo inicialmente mantenha os contratos vigentes com a Delta, nada impede que o poder contratante avalie posteriormente cada contrato e decida por retirar a empresa das obras caso ela seja declarada inidônea, segundo o advogado Bruno Aurélio - do escritório Cascione, Pulino, Boulos & Santos Advogados. Para suspender os contratos o governo teria que instaurar um processo administrativo para cada um e averiguar se a empresa cumpre ou não os requisitos para continuar a execução dos serviços (um dos requisitos é a idoneidade). Mas teria de dar espaço ao "direito de defesa" e possivelmente ser questionada judicialmente.

No ano passado, o Tribunal de Contas da União (TCU) julgou um processo de inidoneidade de um grupo de empresas contratado pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) em 2009 para executar serviços de manutenção em rodovias. A decisão do processo, que teve como relator o ministro Weder de Oliveira, apontou que a declaração só possui efeito futuro e que, portanto, "não ensejaria a rescisão imediata de todos os contratos firmados entre as empresas sancionadas com a administração pública, pois tal medida nem sempre se mostraria solução mais vantajosa".

"Não seria vantajoso para a administração rescindir contratos cuja execução estivesse adequada para celebrar contratos emergenciais, no geral mais onerosos e com nível de prestação de serviços diverso, qualitativamente, daquele que seria obtido no regular procedimento licitatório", justificou o relator do caso, que se baseou em decisões anteriores já deliberadas pelo tribunal.

O professor de direito administrativo e constitucional Pedro Estevam Serrano, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), alerta ainda que o governo pode ter que indenizar a Delta, caso não garanta à empresa o direito de defesa nos contratos questionados. Para justificar intervenção na obra, acrescentou, precisaria ser comprovado superfaturamento, o não cumprimento de condições contratuais ou a execução inadequada do que fora acertado com o órgão contratante. "Cada caso tem que ser analisado individualmente", explicou o professor. "Pouco importa quem é o acionista da Delta. Ela responde como pessoa jurídica, a venda não extirpa as irregularidades da empresa."

Sobre o período em que a Delta ficará impedida de contratar, a lei é pouco restritiva. Não impede que a holding da empresa, por exemplo, crie uma segunda companhia de construção para disputar licitações durante o período de suspensão. "É bastante decepcionante para o poder público, que tem discutido formas de se proteger desses mecanismos", diz Claudia Bonelli, do Tozzini Freire.

Auxiliares da presidente asseguram que Dilma não foi consultada sobre a venda do controle da Delta para a J&F e que não teria dado aval ao negócio. A transação, que envolveu a participação direta do ex-presidente do Banco Central Henrique Meirelles, presidente do conselho consultivo da J&F, teria causado mal estar dentro do Palácio, por ter sido realizada com conhecimento do ex-presidente Lula.

Protagonista dos escândalos de corrupção investigados pela CPI do Cachoeira, a Delta tem hoje cerca de R$ 4,7 bilhões em negócios com a União. São 30 mil funcionários espalhados em 200 contratos firmados com governo. O Dnit é o maior cliente da empreiteira. Atualmente, a construtora tem 99 contratos ativos com a autarquia, em serviços de duplicação, construção e manutenção de rodovias federais. Juntos, esses contratos somam R$ 2,518 bilhões, dos quais R$ 1,410 já foram efetivamente pagos, ou seja, há cerca de R$ 1 bilhão a receber só do Dnit.

Segundo a autarquia, atualmente há 19 contratos firmados com a empreiteira que estão paralisados. Destes, 16 estariam parados porque estão passando por alterações. Outros três, que tratam de obras de manutenção nas BR-304 e BR-116, no Ceará, estão congelados por conta da Operação Mão Dupla, deflagrada pela Polícia Federal em agosto de 2010, em conjunto com a CGU. A propósito, são as irregularidades destas obras realizadas no Ceará que deverão embasar a declaração de inidoneidade da empresa preparada pela controladoria.

Procurado pelo Valor, o Dnit informou que vai aguardar a evolução da investigação da CGU e que "vai obedecer as determinações desta". A Delta declarou que "não se pronuncia sobre possibilidades".

Segundo a CGU, caso a Delta venha a ser declarada inidônea, "os contratos já em andamento podem ser interrompidos ou não, dependendo da avaliação a ser feita, caso a caso, pelo gestor contratante, levando sempre em conta o que for mais vantajoso para o interesse público". A Advogacia-Geral da União (AGU), que representa os interesses do governo em disputas judiciais, informou que ainda não foi acionada pela Casa Civil para tratar do assunto.