Título: Em jogo, o papel brasileiro no mundo
Autor: Fleck, Isabel
Fonte: Correio Braziliense, 24/10/2010, Mundo, p. 26

Política externa Brasilianistas divergem sobre a chance de mudanças reais na diplomacia do país seja quem for o presidente

No próximo domingo, uma grande parcela dos brasileiros confirmará seu voto para presidente da República sem pensar no que a decisão implicará para a política externa. No entanto, quem está de fora observa com atenção todos os (poucos) sinais dados por Dilma Rousseff e José Serra sobre o papel que o Brasil deve desempenhar no cenário global nos próximos anos. Brasilianistas e especialistas ouvidos pelo Correio divergem sobre quão expressivas serão essas diferenças, mas são unânimes em afirmar: enquanto Dilma simbolizará continuidade quase total, com Serra o Brasil se afastaria de Venezuela e Irã para se reaproximar de Washington.

As impressões dos analistas têm por base declarações eventuais dos candidatos e de seus assessores, uma vez que nenhum dos dois apresentou um programa detalhado para a política externa. No site da campanha de Serra, estão elencadas linhas gerais, como ¿dinamizar o Mercosul¿, ¿fazer pressão diplomática junto aos vizinhos para que reprimam o comércio ilegal¿ e ¿não permitir que o viés ideológico ou relações de amizade deturpem as relações entre o Brasil e outros países¿.

A campanha de Dilma, por sua vez, não divulgou nem mesmo diretrizes para a área, mas demonstra que deverá seguir em grande parte a diplomacia de Lula. ¿O Brasil não é um país imperialista. Estimulamos a cooperação, não as políticas de imposição. (¿) Somente assim, será possível criar um sistema internacional em que o multilateralismo seja revigorado, com a participação democrática de todos os países do mundo¿, destaca a equipe da candidata.

Para a especialista em política brasileira Taeko Hiroi, da Universidade do Texas, independentemente do resultado das urnas, pouco mudará no cerne da política externa. ¿Não prevejo grandes diferenças¿, afirma. ¿Dilma continuaria a ênfase dada às relações Sul-Sul e em tornar o Brasil mais assertivo na diplomacia internacional. Mas acredito que Serra igualmente gostaria de destacar as relações Sul-Sul e prosseguir com uma política externa relativamente independente.¿

A semelhança de políticas também é a aposta do presidente emérito do Inter-American Dialogue, Peter Hakim. Ele, contudo, credita isso muito mais à proximidade dos interesses do que a posturas ideológicas. ¿Não importa quem vença, a política externa do Brasil estará mais voltada para servir aos interesses econômicos do país, em vez de desempenhar um papel de grande visibilidade na região e globalmente¿, avalia.

Jerry Davila, professor da Universidade da Carolina do Norte e membro da Brazilian Studies Association (Brasa), também acredita que as diferenças políticas internas pesarão menos no fluxo da política externa do que a situação econômica mundial. ¿Estamos em um momento econômico em que o Brasil está ascendente e as economias dos Estados Unidos e a Europa continuam desaquecidas¿, observa. ¿Nesse contexto, qualquer presidente tenderia a continuar buscando as oportunidades que a conjuntura externa oferece ¿ e elas se encontram nas economias emergentes, em especial na China¿, completa.

Duas escolas Apesar de considerar que os dois candidatos não representam dois estilos de governar opostos, o professor Rogelio Nuñez Castellano, da Universidade Camilo José Cela, de Madri, e analista do portal Infolatam, afirma que os modelos de política externa teriam uma ¿diferença notável¿. ¿Por trás das posturas de Dilma e Serra estão duas correntes de pensamento: a dos institucionalistas pragmáticos, na qual se encaixa José Serra, e a dos nacionalistas, seguida por Lula e seus assessores¿, afirma, em artigo na revista espanhola Atenea.

A primeira, segundo Nuñez, aposta na liderança regional e mundial, mas respeitando o status quo global, enquanto a outra aposta na ¿paciência estratégica¿, apoiada na ¿não ingerência¿. ¿As duas escolas apostam na liderança regional e mundial brasileira, mas a partir de pontos de partida diferentes e com estratégias e prioridades distintas. Para Dilma e o lulismo, a prioridade é mudar o status quo, que é insatisfatório para eles, e reformar a governança global¿, argumenta.

O Itamaraty, no entanto, sustenta que a ação externa brasileira é uma ¿política de Estado¿, e não de governo ¿ o que garantiria sua continuidade mesmo em momentos de alternância. Para Hiroi, essa é apenas uma meia verdade. ¿O Itamaraty tem sido influente, e quem for eleito reconhecerá isso. Mas haverá algumas mudanças , devido às diferenças de objetivos, crenças, círculos, redes e estilos pessoais dos candidatos¿, pondera.

O lado visível da discórdia

No tabuleiro global, alguns países despertam especial atenção dos especialistas quando o assunto é a política externa brasileira. Estados Unidos, Venezuela, Cuba e Irã estão no centro de possíveis mudanças em um eventual governo de José Serra. Já o futuro da relação com a China é vista por muitos como uma incógnita até mesmo em uma ¿diplomacia Dilma¿, que poderá ter de equilibrar o interesse em uma aproximação cada vez maior com a pressão econômica de setores ¿ameaçados¿ pelos produtos e investimentos chineses.

Para Peter Hakim, depois de discordar abertamente de Washington em temas como Honduras e o programa nuclear iraniano e de travar embates econômicos, como na questão do algodão, o Brasil não terá uma relação muito tranquila com os EUA, independentemente de quem for eleito. ¿Mas será menos difícil com Serra. Ele deverá buscar uma reparação da relação com os EUA, em particular esfriando as relações com o Irã e mantendo um pouco mais de distância da Venezuela¿, opina.

Tony Spanakos, cientista político da Universidade Estadual de Montclair, também acredita que as relações com os EUA continuarão ¿complicadas¿. ¿Os dois países têm governos democráticos complexos, onde uma diversidade de grupos compete por influência. E os dois candidatos têm capacidade de criticar e dialogar com os EUA¿, destaca. Ele, no entanto, avalia que, no caso de Cuba, Venezuela e Irã, a diferença entre os dois candidatos é consideravelmente maior. ¿Dilma continuaria e aprofundaria as medidas do governo Lula, enquanto Serra recuaria um pouco.¿

O especialista Jerry Davila, por sua vez, prefere não colocar todos os países ¿polêmicos¿ no mesmo grupo. ¿Cuba e Venezuela fazem parte do continente, e a Venezuela tem fronteira com o Brasil. Podemos esperar que qualquer governo continue a longa política de costurar relações com eles¿, observa. ¿Mas os benefícios da intermediação com o Irã são muito menos claros. Acho que qualquer governo teria de fazer o cálculo dos benefícios cuidadosamente.¿ (IF)