Título: Modernização da diplomacia comercial
Autor: Serapião Jr, Carlos e Magnoli, Demétrio
Fonte: Valor Econômico, 05/09/2006, Opinião, p. A10

A recente suspensão da Rodada Doha por prazo indeterminado pegou o Brasil no contrapé pois, ao contrário da maioria dos países emergentes, afastamo-nos das negociações regionais e bilaterais para apostar tudo na Organização Mundial do Comércio (OMC). A posição do ministro da Indústria e Comércio da Índia, Kamal Nath, é bem mais realista do que nosso samba de uma nota só: reiterou o compromisso de seu país com o sistema multilateral de comércio, mas disse que tem priorizado também, sobretudo enquanto Doha não for destravada, acordos regionais e bilaterais de comércio.

Trata-se do reconhecimento pragmático das duas lógicas concorrentes que determinam as relações internacionais. Por um lado, há lógica dos Estados soberanos na disputa por seus interesses, da "guerra de todos contra todos", expressa pelo pensador britânico Thomas Hobbes. Por outro, o idealismo kantiano crê na igualdade entre os Estados e na viabilidade de um poder mundial que ordene o relacionamento entre eles.

A institucionalidade da OMC - na qual todos os países membros têm idêntico poder de voto e veto e em que o Órgão de Solução de Controvérsias pode dar ganho de causa à menor economia do mundo contra a maior - reflete sobretudo o idealismo kantiano. Subsidiariamente, a prática das negociações globais incorpora aspectos hobbesianos, como é o caso do G-6, que reúne EUA, UE, Brasil, Índia, Japão e Austrália, isto é, os poderes decisivos para a conclusão da Rodada. É sempre bom lembrar que a ONU sobrevive por décadas porque sua estrutura institucional incorpora as duas lógicas - na Assembléia Geral todos são iguais; no Conselho de Segurança, há a constatação realista de que têm assento permanente e poder de veto os países militarmente decisivos no mundo.

O hobbesianismo nas negociações comerciais surge principalmente nos tabuleiros regional e bilateral. Assim, uma grande potência comercial faz valer o peso de seu mercado interno na negociação desses acordos com economias menores. Mas um acordo entre economias de porte desigual não necessariamente é um mau acordo para a menor - fosse assim o Uruguai não negociaria com o Brasil nem Cingapura com a China, nem praticamente ninguém com os EUA. Isto seria, na verdade, negar a essência da teoria das vantagens comparativas entre dois ou mais países, pela qual o comércio internacional não é jogo de soma zero, mas relação em que todos ganham se a negociação for bem feita. Seria negar, ademais, a própria noção de vantagem competitiva, em que um país nunca é competitivo internacionalmente em tudo. Assim, a diplomacia comercial - enquanto braço externo da política comercial - deve priorizar a defesa de setores estratégicos ainda não desenvolvidos, lutar pela liberalização dos segmentos onde o país for competitivo e, de um modo geral, ter em vista outras variáveis do interesse nacional, como nível de emprego, progresso tecnológico, atração de investimentos diretos estrangeiros etc. Mas não se recusar a negociar com A, B ou C por razões ideológicas.

Negociações comerciais são um capítulo importantíssimo da política internacional contemporânea. A posição brasileira de insistir na liberalização agrícola é acertada devido à competitividade de nosso agronegócio. Mas, apostar tudo na OMC, descuidando dos tabuleiros regionais e bilaterais, é um erro estratégico grave porque significa abandonar a dimensão hobbesiana das relações comerciais internacionais.

A inclusão da Venezuela no Mercosul não terá repercussões práticas tão cedo e não encobre a paralisia da agenda de aprofundamento do bloco. Além disso, o fato o Brasil estar amarrado ao Mercosul para negociar com terceiros países e blocos continua sendo tema tabu no governo, embora nenhum outro grande país emergente tenha feito algo parecido. Mantivemos posição irredutível em agricultura na negociação Mercosul-UE e nos retiramos da mesa no caso da Alca, sem que em nenhum dos dois casos tenhamos proposto alternativa criativa de caminho a seguir. Nesses tabuleiros o Brasil sempre pode fazer valer o peso de seu mercado interno a fim de, passo a passo, abrir novos mercados lá fora para nossos produtos agrícolas, industrializados e serviços.

-------------------------------------------------------------------------------- Uma mudança de rumo exigiria a criação de um órgão voltado apenas à negociação internacional, separado da chancelaria --------------------------------------------------------------------------------

As conversações multilaterais de comércio não vão acabar, apenas passam por uma crise, como a que ocorreu em 1990, na Rodada Uruguai do GATT. Idas e vindas, jogos de cena e blefes fazem parte de qualquer processo negociador. O Brasil tornou-se ator decisivo no plano multilateral - e isto é, em parte, uma vitória diplomática. Mas o abandono das negociações na Alca e Mercosul-UE, sem qualquer proposta alternativa à altura, bem como o esvaziamento negociador e a ideologização do Mercosul, são políticas nocivas ao interesse nacional. No plano bilateral, as conversações comerciais com a China ficaram subordinadas ao sonho do assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, enquanto se fazia fumaça com países da África e do Oriente Médio.

Nossa diplomacia comercial tem sido vítima de interesses extra-comerciais, como a cadeira no Conselho de Segurança, a demagogia integracionista liderada por Hugo Chávez, uma retórica terceiro-mundista ultrapassada e um anti-americanismo incapaz de enxergar as oportunidades de acesso a mercado existentes na América do Norte. Uma substancial mudança de rumo, ampliação do escopo e aceleração do ritmo de nossa diplomacia comercial exigiria a criação de um órgão no Executivo destinado apenas às negociações internacionais, separado da Chancelaria e com mandato específico, como têm os EUA e a UE, bem como diversos países emergentes.

Essa Secretaria de Negociações Comerciais Internacionais não seria jamais um "órgão técnico", pois o comércio exterior é uma dimensão crucial da política externa. Mas seu caráter interministerial expressaria mais nitidamente os interesses dos produtores e exportadores nacionais, enquanto sua especialização permitiria conferir ao comércio exterior a importância que tem para a inserção competitiva do país na globalização.

Carlos Serapião Jr. é mestre em Negócios Internacionais pela École Nationale des Ponts et Chaussées. Diplomata licenciado, trabalha atualmente como consultor na área de comércio exterior.

Demétrio Magnoli é doutor em Geografia Humana pela USP e autor de Relações Internacionais: teoria e história (SP, Saraiva, 2004).